O ALVORECER DE UM LITERATO

      Agora é oficial: a minha filha é uma universitária e eu sou aluno do Curso de Letras Português-Espanhol. Hoje foi o dia de matrícula destes dois biXos, dia em que passei a ser colega de mais um dos meus filhos, pois o André já faz Informática na UFRGS.
     Eu havia me inscrito no vestibular na modalidade de concorrer não só às vagas pelo sistema Universal, mas também pela cotas de egressos de escola pública e, ainda por cima, optei por computar a nota da prova do ENEM. Ou seja, estava arrebanhando tudo o que pudesse ajudar, até rezas e velas; só não pude recorrer às cotas de negros e de índios por falta de genótipo convincente.
     Convenhamos, se existe uma área que o governo Lula realmente fez diferença, esta é a área dos meios de acesso às universidades. O interessante é que foi apenas às vésperas da minha inscrição no vestibular que me caiu a ficha de que eu poderia usufruir das mudanças nesta área, com as quais vinha simpatizando sem segundas intenções. De repente me dei conta de que eu próprio preenchia os requisitos, pois havia estudado a vida inteira em escola pública: feito o curso primário na FEBEM, a metade do ginásio no SENAI fazendo o curso de Tipógrafo (remunerado com meio salário mínimo e carteira assinada como menor), e a outra metade do ginásio aprendendo o ofício de eletricista que foi seguido do curso técnico de segundo grau em eletrônica, ambos na Escola Técnica Parobé.
     A grande novidade deste ano foi a ascensão da questionadíssima prova do ENEM, que, até então, vinha servindo apenas para avaliar a qualidade do ensino brasileiro. Em 2010 o ENEM passou a ser a porta de entrada direta para vagas de muitas universidades públicas de renome no país, e passou a ser utilizado, de alguma maneira, por praticamente todas as faculdades na avaliação de ingresso de seus vestibulandos. Confesso que dá gosto ver os jovens acessando o SISU (Sistema de Seleção Unificada) do Ministério da Educação e garimpando Universidades em que seus escores obtidos no ENEM possam lhes garantir vagas públicas ou bolsas de estudo integrais ou parciais em universidades particulares: coisa de primeiro mundo! Esta nova realidade está mexendo com a vida das pessoas, como é o caso do meu colega Erasmo, técnico industrial da manutenção, cujo filho vai migrar para Pelotas por ter conseguido classificação para uma vaga, através do ENEM no PROUNI, no curso de Letras de uma faculdade pública daquela cidade.
     Tive, portanto, a experiência de fazer os torturantes super-provões do ENEM, tipo responder 90 questões absurdamente extensas em cada uma das duas provas, elaboradas de tal maneira “fora da casinha” que simplesmente não tive tempo nem de começar a prova de redação. Isto tudo depois de ver a primeira data de realização dos exames ser cancelada por terem sido roubadas as provas da gráfica e estarem sendo vendidas às vésperas de sua realização. Com pouca prática, o Ministério da Educação tem que se aperfeiçoar muito ainda para melhorar a elaboração de seus exames até se nivelar aos do padrão da UFRGS. Ainda assim obtive um bom rendimento, fiz um escore de 789 pontos que acrescentou 10 pontos sobre a média das minhas notas das provas da UFRGS, onde me classifiquei com um escore de 576 pontos, como o 31º das 132 vagas no curso de Letras. Mas, no final, nada desse esforço extra se fez necessário, pois acabei surpreendendo e conquistei a minha vaga pelo chamado acesso universal e sem precisar do acréscimo proporcionado pelo ENEM.
      O fato festivo da matrícula tem o seu lado melancólico, é que encerra-se aqui o meu ciclo de estudos filosóficos, e o corte deste cordão umbilical acadêmico com a filosofia deixou uma espécie de sensação de vazio no meu peito, após a consolidação da matricula e o conseqüente rompimento irreversível com este curso que tanto contribuiu para fundamentar de modo consistente o aspecto filosófico da vida naa minha formação pessoal. Talvez o vazio se deva ao fato que agora não alimento as mesmas expectativas e carências vitais em relação ao curso de Letras do que quando iniciei na filosofia, mas tomara que eu seja surpreendido e que esta licenciatura se revele tão boa de ser cursada como se revelou o curso de Engenharia de Minas, em que eu não botava a mínima fé, mas que graças ao seu diploma ganhei o meu sustento e, quiçá, usufruirei um bom gozo como literato na minha aposentadoria.

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