OCASO DO MONTEPIO DOS MUNICIPÁRIOS

Como já foi comentado anteriormente, é no Gabinete Médico que se reencontram as diferentes gerações de trabalhadores do Dmae. Um belo dia de 2010 aconteceu de eu estar no saguão de espera para consultar com a Drª Beatriz, quando sentou ao meu lado um aposentado, um ex-colega não só de trabalho, mas também de militância político-sindical e de aprendizagem de vida.  Logicamente que nossas reminiscências comuns passaram por reconsiderações críticas de nossas antigas ideologias políticas: ele um brizolista ferrenho e eu, naqueles remotos tempos de 1994, ainda era um petista “lulista-olivista” quase fanático.
Fizemos, então, uma releitura conjuntural do grave confronto que vivenciamos de lados opostos, após uma longa militância sindical em que atuamos conjuntamente. Refiro-me ao episódio em que fiz parte de uma Comissão de Intervenção, decretada pelo então prefeito Tarso Genro, que destituiu a diretoria do Montepio dos Funcionários Municipais de Porto Alegre (MFMPA). Acontece que este meu ex-colega exercia a presidência do Montepio justamente naquele momento histórico, havia assumido o cargo apenas 17 dias antes (eu nem sabia!); era mais um que ingenuamente servia de “Testa de Ferro”  ao grupo mafioso. Que azar, fiquei muito surpreso ao saber em pleno front! Relembramos a dramaticidade da estratégia do ato de posse da Comissão de Intervenção, que se deu através de invasão de surpresa do prédio (acompanhados apenas de dois guardas municipais desarmados!) e pela ocupação da sala da diretoria da instituição com o Decreto do Prefeito em mãos. Recapitulamos juntos a longa agonia da diretoria deposta, que se viu forçada a buscar a reintegração de posse na justiça comum, o que só foi conseguir cerca de seis meses depois de iniciada  a intervenção.
Aqui faço um remake  dando asas ao livre relembrar de alguns aspectos deste  episódio ocorrido a partir de maio de 1994, que talvez tenha sido o mais controverso em que me envolvi em toda a minha vida. Nesta ocasião, através do Decreto Nº 11.003/94, foi formada uma “tropa de elite petista” para constituir a tal Comissão  Administrativa Provisória, com especialistas designados em cada área: um economista na presidência (Everton da Fonseca), um procurador na Diretoria Administrativa (Rogério Favreto, que depois seria o Procurador Geral da Prefeitura e hoje é desembargador!), um economista  na Diretoria Financeira (Roger Keller), na Tesouraria uma fiscal da Fazenda Municipal (Marilene Iurkfitzg), e eu do Dmae na Secretaria Geral, como especialista na política sindical da categoria dos municipários. Nos sentíamos como o grupo do Fidel Castro tomando Sierra Maestra para libertar a Ilha e devolvê-la ao povo. – Doce ilusão!...
A comissão foi investida com o objetivo de fazer valer a Lei Orgânica que determinava a realização de Eleições Diretas para a Diretoria do Montepio, e cumprir a Lei 751/94, recém criada pela Câmara Municipal, que estabelecia as Eleições Diretas para a Diretoria e também para uma Assembléia Constituinte a fim de elaborar um novo Estatuto para o Montepio. Até então a eleição da Diretoria sempre fora realizada indiretamente pelo Conselho cuja renovação era lenta e gradual,  1/3 a cada dois anos. O fato é que várias gerações de municipários ensaiaram chapas de oposição ao Conselho,  mas com o uso feudal do voto à cabresto, o mesmo grupo se manteve sempre no poder, por décadas desde a  fundação da entidade.
 Foi um cerco total para acabar com o castelinho dos “Donos do Montepio”, onde a Comissão de Intervenção foi o Cavalo de Tróia que invadiu o território dominado pelo inimigo. Com contribuições compulsórias de todos os servidores  e outro tanto dos cofres públicos, arrecadando cerca de 810 mil dólares mensais, O Montepio era nesta época uma poderosa instituição financeira. Era uma verdadeira mina de ouro, por mais besteiras e trampolinagens que os administradores fizessem, sempre entrava mais dinheiro para tapar os rombos. Eram folclóricas as filas que se formavam em torno da quadra da sede da entidade todos os inícios de meses, onde se realizavam cerca de 4 mil empréstimos mensais aos servidores municipais.  Portanto, eu entrei nessa briga consciente que para devolver o Montepio ao controle democrático dos barnabés e arigós, era necessário um plano radical de tomada do poder.
Justamente neste período da Intervenção a Diretoria do Montepio estava construindo o Shopping Olaria, o que foi um banquete para se pegar falcatruas de arrepiar  e de superfaturamentos, tudo a partir de auditorias que deram origem a várias ações ajuizadas e liminares. Uma dessas liminares foi suspendendo o repasse de milhões para a maior de todas as loucuras que pretendiam cometer: o tal de Projeto SISA (Sistema Integrado de Saúde e Assistência) que envolvia a construção de um hospital (megalomaníacos!), para entrarem no ramo de assistência médica e quebrar com a AFM e o Hospital POA, com vista de abocanharem a arrecadação compulsória destinada para a Previdência prevista pela nova Constituição, antes da criação do PREVIMPA.

O fato é que realizamos a maior de todas as eleições já promovidas dentro da classe municipária, com mais de 10.000 votantes no primeiro turno e com seis chapas concorrentes. Daí em diante foi uma guerra de liminares na justiça, a primeira devolvendo a direção da entidade para antiga diretoria. Esse foi um período difícil que, sem a máquina do Montepio, tivemos que bancar o segundo turno da eleição na clandestinidade (apenas com um apoio encolhido e assustado do governo municipal) e ainda com a diretoria irada procurando minar e desacreditar o processo. Aos trancos foi concluído o segundo turno da eleição em que disputaram as chapas do Darvin Ribas e a do Paulo Müzel, resultando vencedora a chapa alinhada com a Adminstração Petista. A partir de então ocorreram outras brigas de liminares judiciais, travadas para que a diretoria democraticamente eleita pudesse tomar posse num montepio que, a estas alturas, já estava literalmente tomado de seguranças (capangas realmente armados) para não possibilitar invasões no latifúndio que o grupo considerava de sua propriedade particular.
Durante este período de intervenção, que durou seis meses, não recebemos nenhum centavo dos cofres do Montepio (ao contrário do que faziam as Diretorias anteriores que se presenteavam com altos salários adicionais aos seus de servidores). Com o cargo de Secretário, além de assumir a função do “Tio Hugo” (onde havia filas no chamado “beija mão” para a concessão de empréstimos além das margens de disponibilidade dos servidores); eu fiquei também encarregado da “comunicação com a Categoria”. Sozinho escrevia, editava, publicava (tiragem de 15.000 exemplares) e distribuía (nos gabinetes dos Secretários e Diretores de Departamentos para re-distribuírem) o Boletim Informativo do Montepio em quatro páginas A4... Durante esta batalha do exército de um homem só eu realizei completamente o meu lado de jornalista (mais do que nos tempos da AMPA).

Ao final de dezembro/94, demos por concluída com êxito a Comissão de Intervenção, uma vez  cumprida a missão de promover as Eleições Diretas no Montepio. Porém, com muito puxa-e-empurra judicial, a nova diretoria e o novo Conselho Deliberativo Estatuinte, conseguiram tomar posse somente através de liminar em 10/janeiro/1995;  mas foram depostos por outra liminar menos de trinta dias depois. Foi um mandato relâmpago que consistiu no último sopro de vida antes do “Ocaso do Montepio” que resultou na sua agonizante morte por “insolvência judicial”. Foi o fim dessa pseudo entidade de previdência (posto que pagava apenas e precariamente as “pensões das viúvas” sem arcar com as aposentadorias dos municipários)!
 A decantada fortaleza do Montepio era, na verdade, um castelo de areia, não restou nada aproveitável, nem mesmo o seu patrimônio em imóveis. A entidade resultou como um buraco negro que engoliu tudo o que arrecadou da família municipária; com a gangue operadora do esquema se metamorfoseando em “cooperativa financeira de crédito” (COOPERPOA) para continuar engambelando os mais incautos e necessitados.  Avalio que a intervenção valeu a pena, pois sem essa devassa realizada na caixa preta que era o Montepio não se criariam as condições objetivas para a concepção do PREVIMPA, órgão criado como uma instituição independente daquela estrutura totalmente corrompida e falida a ponto de implodir; ao contrário do que até então a forte propaganda do Montepio fazia a categoria acreditar. Graças à desmistificação e ao “Ocaso do Montepio” é que as gerações atuais e futuras de municipários podem usufruir e planejar uma aposentadoria com maior confiabilidade na competência da gestão dos fundos de pensão e previdência  geridos pelo PREVIMPA.
-Valeu Membros da Comissão Administrativa Provisória do Montepio!


CAMINHANDO CONTRA O VENTO NUM RETROPICALISMO

Sempre quando ouço os lero-leros políticos-partidários, onde velhos e novos picaretas fazem apologias românticas e ilusionistas da democracia, me lembro dos meus estudos do filósofo Nietzsche, o destruidor de ídolos.
A elaborada teoria nietzschiana da genealogia da moral, resumindo, diz que a modernidade ocidental-cristã derrubou as virtudes pagãs da cultura grega e instituiu uma moral de escravos. É nesta perspectiva que os movimentos de jovens, tanto o estudantil quanto o hippie, se rebelaram contra a moral repressora na década de 60, e por isso são tidos como nietzschianos. O filósofo bigodudo gostava de associar ao deus Apolo ( deus da beleza, perfeição, harmonia, equilíbrio e razão) as pessoas que se têm por politicamente certinhas; e ao deus Dionísio (das festas, do vinho, da exacerbação dos sentidos e excessos) os malucos psicodélicos que se jogam na vida de ponta cabeça.
 Mas a história oficial, como sempre, é contada pelo apolíneos (os politizados), e todas as conquistas de transformações sociais, culturais e de costumes conquistadas naquele período são atribuídas, a meu ver equivocadamente, aos estudantes rebeldes de maio de 68. O saldo histórico que ficou não foi político, está aí o FHC, o Lula & Dilma (ícones da esquerda dos anos 70) e a Rebelião dos Vinte Centavos para comprovar que nada de essencial mudou na política; a grande mudança que houve foi cultural (artes e costumes), que é o campo em que os hippies tencionaram com uma vivência alternativa prática (dionisíaca) e não meramente teórica e discursiva, como o povo que #foiprarua em junho para manifestar indignação geral com a política que não representa mais ninguém, só seus patrocinadores.
Agora, com a avalanche de condenações de jovens que protestavam mascarados em várias capitais do país, enquadrados pela nova lei do Crime Organizado ou pela velha lei de Segurança Nacional;  e com a Ordem de Prisão dos condenados no Mensalão, que está colocando na cadeia nossos apolíneos figurões do panteão da esquerda revolucionária, parei para refletir para compreender melhor a minha própria trajetória de vida: Meus heróis morreram de overdose e os meus líderes estão no poder e na prisão!...
Na década de 60, eu estava no lado dionisíaco da história, com uma pequena mochila nas costas, pegava a estrada pedindo caronas e fazendo artesanatos para sobreviver. Vivenciei comunidades hippies e festivais de música, drogas e rock and roll até no Uruguai, paraíso das drogas livres na época; enquanto a juventude apolínea fazia as barricadas nas ruas de Paris.
 Na década de 70, alienadamente curtia o tropicalismo com “Alegria,Alegria”, dionisiacamente caminhando contra o vento sem lenço e sem documento; enquanto apolineamente a juventude engajada se lançava na luta armada da guerrilha urbana contra a ditadura militar.
 A partir dos anos 80 eu migrei para o lado apolíneo da história, me tornei um militante engajado na construção de um sindicalismo com consciência de classe e de um  partido de luta dos trabalhadores, enquanto o lado dionisíaco virava punk-anarquista...
Na virada de 2000, virada de século e de milênio, voltei a procurar a minha essência dionisíaca, mas o máximo que consegui foi tornar-me um rebelde sem causa: voto nulo! Recorri, então, ao estudo da apolínea filosofia clássica, tribo em que sempre me senti como um estranho no ninho do meio acadêmico apolíneo. Passei a correr, como Proust “Em busca do tempo perdido”, atrás das minhas vinculações dionisíacas com a arte, especialmente com a literatura e a poesia, que se mantiveram minhas fiéis escudeiras contra “a cultura de rebanho” de apenas sobreviver, que é feito um caracol que se enterra em seu próprio casco”, como esbravejava Nietzsche.
  A partir da década de 2010 voltei para o lado dionisíaco do mundo, caminhando contra o vento sem horário e sem cartão-ponto,  como um aposentado libertário em busca do tempo apolineamente perdido...num RE-TROPICALISMO:
 Quando eu soltar as amarras
     E sair singrando
       Pela vida
         Sem horários
           Sem destino
             No caminho imenso
               Do tempo
                 Que me restar...
                    Vou finalmente
                       Caminhar contra o vento
                         Com lenço
                            E com documento
                               Nos bolsos e nas mãos
                                 Pra mostrar
                                   Que ainda sou eu
                                      Que estou a caminhar
                                         Que eu ainda
                                             Estou caminhando
                                               Contra o vento
                                                 E com documento
                                                     Pra provar.

REENGENHARIA SOCIOLÓGICA NAS VILAS

Esta postagem vai em homenagem aos colegas da ASSEC (Assessoria Comunitária do Dmae) na década de 1990. Quando terminou a grande epopeia da Intervenção Municipal postada neste blog como Ocaso do Montepio, cumprida a missão voltei para trabalhar no Dmae, numa salinha apertadinha com mais três colegas na ASSEC. Este órgão era extra-oficial, pois nunca existiu no organograma oficial da empresa, mas foi um apêndice importante da estrutura operacional do DMAE na Era Petista. Foi quando a administração pública municipal percebeu a importância de se estabelecer um relacionamento mais sociologicamente profissionalizado com as comunidades carentes da nossa cidade.
           Com os novos colegas de sala, Marcos Scharnberg e o arquiteto JKonrad, fiquei trabalhando na ASSEC por alguns anos. Foi um período de intensos aprendizados mútuos através de trocas de experiências profissionais e culturais. Com os meus colegas da sala aprendi a dominar a elaboração de projetos de redes públicas de água e de esgoto cloacal, período em que inclusive cursei disciplinas de saneamento no curso de Engenharia Civil da PUC. Com os demais colegas da ASSEC trocamos muitos disquetes, fitas cassete e Cds  com músicas da preferência de cada um: eu com MPB, o Konrad com rock da antiga e o sociólogo Jorge Maciel Caputo com o repertório cubano, argentino e, sobretudo, o uruguaio. Nenhum dos três colegas citados (e sorridentes na foto) está mais trabalhando no Dmae, sendo que recentemente o JKonrad, que era cedido da SMOV, não teve sua cedência renovada possivelmente devido ao seu espírito crítico e de engajamento político. Foi descartado sem a mínima consideração ao seu histórico profissional e à contribuição qualificada que ele deu com o seu trabalho para o Departamento, com destaque para a elaboração do Plano Diretor de Esgoto do Dmae.
- Valeu amigo Jorge Konrad! 
Éramos um grupo técnico de engenharia cercado por sociólogos por todos os lados: além do Caputo tinha a Fátima Silvello, a Antônia, a Lea Maria, a Enid Backes e o figuraço do Roque, um ex-seminarista oriundo de movimentos igrejeiros junto aos colonos sem terras.   Vivíamos o período de ouro da Orçamento Participativo (OP), cuja implantação e coordenação geral no âmbito de toda a prefeitura foi feita, durante os dois primeiros mandatos petistas, pelo meu falecido irmão Gildo Lima. Nas noturnas reuniões temáticas do OP, nas mais humildes vilas e comunidades, era exigida a presença dos técnicos do Dmae, para não deixar que os sociólogos viajassem demais na maionese de seus devaneios teóricos de realização das demandas reprimidas dos mais pobres. Éramos os faróis do tecnicamente realizável.
Segundo depoimento do JKonrad, que ficou mais tempo por lá, juntamente com o Luis Fernando Albrecht, depois que eu saí em 1997 e fui ser Diretor da Manutenção, a ASSEC foi extinta no início do governo Fogaça, sob a alegação que o seu papel poderia ser desempenhado pelos setores oficiais da Estrutura do DMAE. Mais tarde se viu que isto não se realizou, pois a ASSEC não era simplesmente uma Assessoria Comunitária, ela agregava outros valores de atuação integrada com educação ambiental e participação comunitária no planejamento das ações do DMAE. Durante o meu trabalho na ASSEC, além de comer os suculentos e inesquecíveis churrascos de ripa de costela assados pelos colegas Coelho e Paulo Melo da topografia, tive a oportunidade de vistoriar e fazer levantamentos em becos, vielas e vilas que me marcaram muito, que me deram consciência das péssimas condições de vida em que vivem parcelas significativas da população portoalegrense. Em compensação pude projetar e  viabilizar a construção de muitas redes de água e de esgoto nestas comunidades da periferia carente de saneamento básico.
Antes, a Fátima Silvello e eu moramos no mesmo bairro quando éramos estudantes de sociologia e de engenharia, convertidos para as lutas sociais de redemocratização no Brasil no início da década de 1980. Nos mobilizamos no Núcleo Jardim Botânico para a construção de um  Partidos dos Trabalhadores, e para o fortalecimento da consciência de classe de toda uma geração de servidores do DMAE que passava a se organizar sindicalmente como a Categoria dos Municipários.  Belos tempos utopicamente revolucionários e amorosos aqueles!...Muito trabalhamos apaixonadamente na elaboração dos boletins, jornais e cartazes do movimento: eu entrava com o texto e ela com a arte e diagramação, desenhista criativa que era. Juntos fazíamos muito barulho!
Depois, pelos desígnios insondáveis do destino, trabalhamos  juntos na mesma sala da Assessoria do Diretor Geral Guilherme Barbosa, no início da era petista na Prefeitura, antes de voltarmos a trabalhar juntos na ASSEC, ainda como Cargos em Comissão. Os últimos contatos que tivemos, a Fátima e  eu, foi pouco tempo antes dela se aposentar do Dmae. Posteriormente soube que ela estava doente e passei a lhe enviar emails com links de acesso para este blog. Em 23/outubro/2011 soube que a “companheira Fátima Silvello” não estava  mais entre nós...Que coisa, hein?!...Espero francamente que os espíritas e os budistas tenham razão e que existam realmente reencarnações e renascimentos cármicos, para que possamos aproveitar evolutivamente as convivências que tivemos com pessoas especiais (como a Fátima) nesta nossa vida mundana.
- Belos tempos, valeu companheira Fátima Silvello!

A RODA DE CHIMARRÃO DA MANUTENÇÃO

A roda de chimarrão é uma das tradições nativistas que mais caracterizam o espírito de confraternização e proseador dos gaúchos. Desde o patrão à peonada de estância, desde os diretores aos operários do Dmae, todos se irmanam passando de mão em mão o mate amargo. A expressão “roda de chimarrão” vem da gauchada em torno do fogo de chão, mas prevaleceu no sentido figurado da cuia que roda de mão em mão respeitando sempre a mesma seqüência.
 Eu que já tomei chimarrão em antigas rodas formadas por gente que já se aposentou há muito tempo atrás, por último participava de rodas formadas pelos filhos desse pessoal, tais como o Marco Bica e o Lazzarin, filhos do Fernando Manjerona e do Sady Raposão. Naturalmente que a roda vai se renovando em novas gerações de funcionários da manutenção, e volta e meia retorno lá para matear com: Fernando, Oliveira, Erasmo, Ioni, Arraché, Ciro, Pedro,  e os novos servidores que vão se achegando na roda através de concursos públicos...
A rotina operacional das equipes de manutenção é a mesma desde sempre, ou seja, as turmas saem de manhã cedo para executarem serviços nas estações de bombeamento e tratamento do DMAE, e começam a retornar para a DVM depois das onze horas para o almoço e bicar um mate. Assemelha-se à rotina dos gaudérios que saiam a cavalo para as lidas do campo e voltavam para matear no galpão à espera da boia. Assim, tradicionalmente o pessoal que trabalha internamente, especialmente as chefias que distribuem os serviços para equipes de rua, preparam o chimarrão depois das onze horas e, na medida que as equipes vão retornando, novos mateadores vão se agregando à roda. Enquanto os capatazes fazem o relato dos serviços executados e das  eventuais pendências da manhã, o chimarrão vai lavando as tripas para esperar o rango da peonada.
 Como em toda a roda de chimarrão sempre são contados causos, segue alguns causos da Roda de Chimarrão da Manutenção que são contados mais ou menos assim:
INFIDELIDADE PÓSTUMA
Após a ocorrência do caso do acidente de trabalho fatal do jovem eletricista Ubirajara Teixeira, o Bira,  relatado aqui na postagem OS MORTOS DA DVM, conforme conta o folclore interno da rádio-peão,  quando entregaram para a viúva os objetos pessoais que o falecido tinha no armário do vestiário da Manutenção, deu problemas  póstumos de infidelidade, pois no armário havia cartas de casos extra-conjugais...
CACHORRO COM SETE VIDAS
O  Ori, vulgo “Cachorro”, foi assaltado há vários anos atrás e, ao reagir, levou um tiro no abdomem a queima-roupa. Esteve literalmente com o pé-na-cova, pois os ladrões que roubaram o fusquinha dele, na fuga  passaram com o carro por cima da sua perna. Mas, que nem gato, o Cachorro se reabilitou e voltou a trabalhar. Há poucos anos atrás gastou mais uma de suas muitas vidas, desta vez num acidente de trabalho. Ocorreu que uma marreta de ferro de 5kg  caiu de uns sete metros de altura sobre sua cabeça, numa estação de bombeamento de esgoto do DMAE.  Por sorte, pois ele conta que nem viu o perigo e estava sem capacete, a marreta pegou de  “raspão” no supercílio, provocando um corte superficial e meia dúzia de pontos no HPS. Se pega de cheio, estraçalhava a cabeça do Ori e acabava com todas as vidas que ele por ventura possa ainda dispor, era game-over! Porém, com mais sorte que juízo, segue o jogo das Sete Vidas do Cachorro que não que saber de se aposentar...

O FAZENDEIRO DO MEL
O Meleiro Hugo (o Pilha Fraca), estava  pensando em se aposentar junto comigo, e já tinha o seu projeto do que fazer após a aposentadoria: se dedicar ao apiário, atividade que normalmente já lhe proporcionava duas colheitas ao ano de 600 kg de mel, nas florações de outono e primavera. Às vezes, quando a floração é muito boa, “dá sobre-caixas” (que é uma terceira colheita no verão). Para acessar os sítios desabitados onde o Hugo tem suas caixas de abelha, ele costuma ir armado de espingarda 12, e conta que fica com a arma engatilhada enquanto a mulher abre os portões e portas das instalações prediais, tendo em vista que as casas seguidamente são invadidas por vadios da região. O Hugo dizia  que estando aposentado vai cuidar melhor e dar manutenção às estruturas das colmeias que ficam distribuídas num raio de 5 km. Na época ele já tinha encomendado 15 mil mudas de eucaliptos para plantar nos sítios dos seus abelheiros, para aumentar a produtividade. Já estava também estabelecendo entrepostos de distribuição da sua produção de mel nas diversas divisões do DMAE, treinando colegas para servirem de intermediários mediante recebimento de comissões nas vendas. E ainda assim, com toda esta programação de atividades dele para após aposentadoria, ele me revelou que estava sentindo um “medinho” por estar se aproximando a data da aposentadoria, ao mesmo tempo que me interrogava  se não ocorria o mesmo comigo...
-Normal, respondi, é um salto no escuro sem volta! Dá um frio na barriga, dá medo....Hoje, aposentado, o meleiro Hugo me conta que anda viajando tudo o  quanto pode por este Brasil imenso; o Pilha Fraca recarregou as pilhas e está voando mais que as suas abelhas!
O SORTEIO DA TELEVISÃO
            O Romeu (o Buldogue) compunha comigo (o Grazziotin) mais o Hélio (o Azeitona) e o Ranyr (o Grilo) os “Quatro Cavaleiros do Pátio”, técnicos industriais que chefiávamos as seções da manutenção na década de oitenta (Veículos, Preventiva, Mecânica e Elétrica, respectivamente). Trabalhamos na mesma sala por mais de uma década em perfeita harmonia, eles foram meus mestres e ajudaram a formatar o órfão de pai que eu era na pessoa humanizada que me tornei. O Romeu, com toda a sua aplicação e excelência profissional, apesar de ter cara de sisudo, era um baita gozador, adorava empulhar aos desavisados. Certa época tinha um estagiário de engenharia mecânica, um guri de origem italiana do tipo que busca levar vantagem em tudo, o Moretti, que no fundo era um baita de um ingênuo e filhinho de mamãe. Acontece que no refeitório da Manutenção havia uma televisão que já estava velha e dando defeitos. Como era da cultura da Divisão, foi feita uma “vaquinha” de contribuições entre os funcionários e foi adquirido um novo aparelho. Ao ver chegar a caixa com a nova televisão, em pleno mês de dezembro, o Moretti quis saber para quem era o receptor. Com a rapidez e perspicácia que era própria do Romeu, ele inventou que a TV era para ser sorteada na festa de natal da DVM. Logo entrou todo mundo na onda, alimentando a expectativa do estagiário “olho grande”. Não deu outra, no churrasco natalino em que tradicionalmente, como locutor ao estilo Sílvio Santos era eu que promovia os sorteios dos prêmios. Cabe registrar que os comes e bebes da festa e os prêmios eram adquiridos com o fundo recolhido durante o ano inteiro de cada participante, cobrado mensalmente pelo falecido Alonço, o Camundongo.
         A propósito de apelidos, tem os vulgos oficiais, que são ditos diretamente para o dito cujo; mas têm aqueles que são apenas sugeridos ou falados pelas costas.  O Camundongo era chamado diretamente de Miau (sugerindo o Camundongo), e o Buldogue  era referido sorrateiramente por medo que o Romeu, com suas bochechas de buldogue, ficasse brabo e mordesse. Mas era só cara de brabo, o Romeu Flávio Danilo Garcia (nome múltiplo como o próprio cara, mas não necessariamente nesta ordem) era um amigão e um gênio em mecânica, mente brilhante que tristemente a doença de Parkinson fez ele se aposentar muito, muito, muito precocemente!   Então, voltando ao sorteio natalino, o último e mais importante presente sorteado na noite foi a dita televisão e o felizardo ganhador, é claro, foi o estagiário Moretti. Que felicidade de criança dele ao receber o presente que tanto almejava!...Não lembro se deixamos ele levar para casa e descobrir sozinho que dentro da caixa estava a velha e sucateada TV valvulada, ou se o poupamos desse vexame familiar com a sua mamãe...
- Valeu Romeu, Hélio e Ranyr pelos muitos mates e causos exemplares!