Os Cercos de Lisboa e de Porto Alegre

Após ter lido o livro História do Cerco de Lisboa, de   Saramago (único ganhador do Nobel de Literatura de língua portuguesa), coincidiu de eu ler um artigo de jornal intitulado “O longo cerco: como a capital se tornou, enfim, farroupilha”, escrito pelo escritor gaúcho Marcel Citro. Na ocasião, que também ocorreu a polêmica abordada pelo professor Luis Augusto Fischer, de ser ou não o gauchismo uma “Tradição Inventada” e o Acampamento Farroupilha parecer um “favelão gaudério”, me intrigaram as circunstâncias históricas semelhantes e os diferentes desfechos dos cercos ocorridos nas cidades de Lisboa e de Porto Alegre.
O Cerco de Lisboa, que durou vários meses no ano século XII, integrou a Reconquista cristã da península Ibérica, com a expulsão dos árabes que ocupavam a região por quatro séculos. Cerco este realizado pelas forças de D. Afonso Henriques que realizou a formação do reino de Portugal como uma nova nação. O antecedente histórico do cerco de Porto Alegre era de que, em decorrência dos impostos imperiais sobre o charque, a revolta foi assumindo o ideário progressista de abolição da escravatura e de democracia sob um sistema republicano.
 A Revolução Farroupilha resultou separatista com a proclamação da República Rio-Grandense, em 1836, chefiada por Bento Gonçalves. Lisboa e Porto Alegre foram conquistadas pelos respectivos cercos, sendo que Lisboa foi dominada e se tornou a capital de um novo país; enquanto os portoalegrenses, depois do entrevero da Ponte da Azenha no lendário 20 de setembro de 1835, a cidade sitiada foi dominada pelos revolucionários sitiantes durante nove meses apenas.
Saramago, em sua narrativa sobre o Cerco de Lisboa, objetiva demonstrar a impossibilidade da história total e a subjetividade do historiador, buscando refletir sobre o discurso oficial da história acreditada, acessando outras possibilidades que foram relegadas pelas versões tomadas como canônicas. Introduzindo personagens da “raia miúda”, que não tiveram voz, e transformando as figuras históricas em personagens com suas fraquezas e perversidades, o escritor lusitano procura também esmiuçar as contradições das fontes que fixaram o discurso histórico dos vencedores.
Este é o ponto dos desfechos contraditórios dos cercos de Lisboa e de Porto Alegre. Aqui, noves meses depois, o domínio da cidade pelos revolucionários terminou em vexame: os legalistas imperiais se apossaram do quartel farroupilha, deram o toque de reunir em plena madrugada e, à medida que os farrapos acorriam para atender ao chamado, iam sendo presos, um a um, no quartel. Por estas e por outras, Porto Alegre ganhou o título de “Mui Leal e Valerosa” cidade do governo imperial, ou seja, anti-farroupilha.
 Saramago narra que no cerco de Lisboa a fome tinha se mostrado em sua mais obscena expressão. Já tinham desaparecidos os gatos e cães, e as ratazanas eram perseguidas. De maneira análoga, inconformados com a perda da capital, os farroupilhas organizaram três sítios consecutivos por três anos e meio, visando a retomada da cidade pela fome, pelas armas ou pelas epidemias...Mas os sitiados portoalegrenses venceram os sitiadores da cidade liderados por Bento Gonçalves.


Naturalmente que no romance histórico Saramago trama um caso de triângulo amoroso entre um soldado português heroico e uma galega que acompanhava a guerra para servir de objeto sexual a um cavaleiro em cruzada (como tantos outros mercenários estrangeiros contratados para ajudar na luta contra os árabes, a preço do que pudessem saquear com a vitória). Analogamente, na série de TV “A Casa das Sete Mulheres” ganhou destaque o romance do estrangeiro herói de dois mundos, Giuseppe Garibaldi, o italiano que tentou libertar Roma do poder papal e que, por aqui, se tornou o comandante da marinha farroupilha. Garilbaldi, que andou arrastando asas para a Manuela, sobrinha do Bento Gonçalves, acabou caindo de amor e levando de vento em popa, para lutar e se tornar heroína no Velho Mundo, a catarinense Anita Garibaldi.
O estancieiro Bento Gonçalves, com sua fuga espetacular da prisão, foi o personagem gaúcho de maior destaque na epopeia farroupilha. Porém, foi no romance O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, que se formou o herói literário típico do gauchismo: festeiro que adora pelear numa guerra, bonitão e mulherengo. O Capitão Rodrigo Cambará é o nosso Martin Fierro, gaúcho que se derreteu de amores pela Bibiana, mas sem perder a sua índole  libertária de índio guerreiro que acabou morrendo  jovem de morte matada nas peleias entre Ximangos e Maragatos.
Os anais da história oficial de Portugal registra o chamado “Milagre de Ourique”. Consta, pois, que Dom Afonso Henriques, durante a Batalha em Ourique (cuja vitória foi fundadora do novo país lusitano), teria tido um sonho em que Deus lhe aparecera dizendo que venceria todas as batalhas e que veria Jesus no dia seguinte, como de fato teria ocorrido, comprovando o milagre e caracterizando oficialmente o povo português como eleito por um desígnio divino. Saramago ironiza se não teria sido mais útil Jesus Cristo ter aparecido para os mouros, convertendo-os. Afinal, eles foram massacrados e morreram como infiéis...
Assim como no cerco do rio Tejo, no do rio Guaíba também consta nos anais da história rio-grandense uma espécie de “Milagre da Ressurreição Farroupilha”. Terminada a Guerra Farroupilha, em 1845, com a República Rio-Grandense desfeita, os escravos negros que lutaram dez anos pela causa foram chacinados em Porongos, e o General Bento Gonçalves morreu dois anos depois em total ostracismo político. Contudo, as façanhas e os ideais dos derrotados farroupilhas foram pouco a pouco sendo absorvidos e ressuscitados pelo discurso oficial através da invenção do gauchismo.
 Os vencedores incorporaram as bandeiras dos vencidos, lhes dedicando grandes comemorações e acampamentos campeiros (inclusive ne centro da capital), com direito a desfiles alegóricos em amplos espaços públicos e até a hino: Como a aurora precursora do farol da divindade, foi o Vinte de Setembro o precursor da liberdade... Dos cercos de Lisboa e de Porto Alegre, resultaram povos arraigados em tradições inventadas, cujas crenças fervorosas chegam às raias de uma mitologia religiosa, respectivamente espalhadas  por todos os rincões do Alentejo e do pampa gaúcho. Com o nosso sangue lusitano de açorianos, pelo jeito, como diz uma canção de Chico Buarque: Esta terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso Portugal!