MEUS CAMINHOS DO CENTRO DE PORTO ALEGRE

(Minha homenagem ao aniversário de 243 anos da cidade)
Roteiro: Travessa Pesqueiro, João Alfredo, Luis Afonso, José do Patrocínio, República, Praia de Belas, Borges de Medeiros, Demétrio Ribeiro, Cipriano Ferreira, Duque de Caxias, João Manoel, Rua da Praia e cais da Usina do Gasômetro.

Quando eu decidi que era hora de comprar a minha morada definitiva, listei os seguintes pré-requisitos como essenciais: apartamento de cobertura, com elevador, dois quartos, box de estacionamento, situado de preferência no bairro Cidade Baixa e, se possível, com vista para o pôr-do-sol do Guaíba. Depois de meses pesquisando os preços do mercado e consultando os pilas na guaiaca, fui eliminando exigências. Fui forçado a decidir que o apartamento de cobertura podia ter um quarto só e ser sem box. Diferente das pessoas que compram casa com terreno, que costumam dizer que compraram seu pedacinho de terra no planeta, eu digo que comprei meu pedacinho de céu. Logo que mudei eu avistava o pôr-do-sol portoalegrense, incluindo trechos das águas do Guaíba: era a realização do meu tão sonhado sonho. Hoje, quase quinze anos depois, às vésperas de terminar o financiamento do imóvel pelo SFH, com o surgimento dos gigantescos edifícios públicos na orla do Parque Harmonia, não visualizo mais nem a chaminé da Usina do Gasômetro e nem aos fogos de artifício do réveillon da festa municipal. Aprendi, com o tempo, que o céu é a única vista que realmente é perene num apartamento de cobertura.
 Costumo dizer que moro a meia hora de caminhada de tudo que mais interessa a um portoalegrense típico: junto a atual zona boêmia na Cidade Baixa, perto do centro, da Usina do Gasômetro, do Parque Marinha, do Shopping Praia de Belas, do Gigante da Beira Rio, do Zaffari Menino Deus, da Azenha, da Redenção e do Bric. Portanto, vivo num círculo de autossuficiência de serviços comerciais e culturais. Gosto de caminhar por todos estes  caminhos da cidade com meia hora de duração para ir, e o mesmo tanto para voltar. A Prefeitura de Porto Alegre tem um programa chamado Caminhos do Centro, feito a pé e guiado por especialistas na história e na arquitetura de cada itinerário percorrido, evento que ocorre na manhã do último sábado de cada mês. Sempre quis fazer estes Caminhos pelo Centro Histórico da cidade, mas sábado de manhã sempre foi dia sagrado de dormir até mais tarde; não rolou nem mesmo depois de aposentado.
          Então resolvi, no meu tempo e ritmo, trilhar os “Meus Caminhos do Centro”. Naturalmente que iniciei o percurso depois da minha cesta sagrada após o almoço. Sempre que caminho pela cidade, depois de inativo, vou prestando atenção e usando a câmera do meu celular para registrar as “street-arts” dos grafites nos muros e fachadas, bem como outras artes de rua, como monumentos e recantos do nosso meio ambiente urbano. Já acumulo uma coleção de várias centenas de fotos de ruas com inserções artísticas na nossa cidade, muitas já extintas só existem hoje nas fotografias:  Mas desta vez, por ser uma situação especial, saí da minha morada munido de uma máquina fotográfica. Como já dizia o nosso poeta Quintana: “Há tanta esquina esquisita. Tanta nuança de paredes / Olho o mapa da cidade / Como quem examinasse a anatomia de um corpo... (É nem que fosse meu corpo!)”. Saí decidido a fazer uma caminhada de exercício físico e espiritual, pois conforme fosse andando pra frente por este roteiro, mais e mais pra trás as lembranças provocadas pelos detalhes e histórias das ruas iriam me levando.
          Da Travessa Pesqueiro, onde vivo em Porto Alegre, encravada nos limites dos bairros Menino Deus, Praia de Belas e Cidade Baixa, atravessei a avenida Aureliano de Figueredo Pinto, pra quem não sabe é a continuação da Érico Veríssimo que os antigos ainda chamam de Cascatinha ( aquela que aos domingos é rua de lazer na pista central do corredor dos ônibus, corredor este que serviu de pátio para as minhas crianças andarem de bicicleta, roller e skate), e segui caminhando pela rua João Alfredo, com suas casinhas antigas de porta e janela germinadas transformadas em bares noturnos. Ali me veio a lembrança do tempo em que os desfiles de carnaval da pacata cidade de Porto Alegre eram na rua João Alfredo, para onde as famílias traziam suas cadeiras e sentavam ao longo das calçadas, onde o cordão de isolamento era literalmente apenas por uma corda amarrada nos postes; e lá me vi criança, fascinado pelo espetáculo da vida. Seguindo pela João Alfredo, depois de passar pela Joaquim Nabuco e Lopo Gonçalves, que são interligadas pela histórica e tombada Travessa  dos Venezianos,  cruzei  pelo antigo Solar Lopo Gonçalves, que  hoje é um Museu com sua senzala no porão. Ao lado do museu ainda hoje existe uma casa velha onde permanecia até pouco tempo atrás a placa da Gráfica Sandra, local do meu primeiro emprego como tipógrafo profissional aos 17 anos de idade (recém saído do internato).
. Segui caminhando e dobrei na Rua Luis Afonso, onde na minha infância a minha família morou pela primeira vez num apartamento (depois de viver por décadas em peças alugadas). Entrei na José do Patrocínio, no sentido da República, e sem resistir tive que invadir, para fazer umas selfies no pátio do que antigamente era a casa de cômodos que a minha família morou, em cujos fundos tinha uma enorme campinho de futebol e dezenas de árvores, com muitas goiabeiras...e que hoje é uma sede zonal do Departamento de Esgotos Pluviais. Ali, entre os boyzinhos da zona, no início dos anos 70, éramos conhecidos como os três irmãos: Xirú, Xiruzão e Xiruzinho (eu, um adolescente rebelde às vésperas de botar o pé na estrada de carona, como hippie e artesão). A diversão dos marmanjos, sem internet, era provocar brigas com turmas de outras zonas: contra os playboys da Demétrio Ribeiro ou contra os Barra Pesada da Baroneza do Gravataí (destes sempre apanhávamos feio!) Mas os Xirus eram bons de facão! (menos eu, é claro, que era piá e só ia pela adrenalina de assistir e correr junto depois).
Na Rua da República desci no sentido do antigo Rio Guaíba e atual lago, passei pela escola e Igreja Pão dos Pobres, cujos sinos até hoje fazem parte das minhas manhãs de domingo com sua sonoridade mística. A seguir, peguei a rua Praia de Belas. Em frente ao prédio do DAER, me veio lembranças antigas, dos tempos em que havia um mercado público, tipo uma grande feira livre permanente, no local onde hoje tem o quartel do Corpo de Bombeiros e o grande edifício do IPE. É incrível como me percebo antigo, o rio vinha até as proximidades da Avenida Borges de Medeiros, só quem viu para acreditar. Nadando no rio acompanhei o lento processo de drenagem e aterro de todas esta área que hoje constitui o Parque Marinha do Brasil e o Parque Harmonia, inclusive para as obras de construção do estádio de futebol  Beira Rio do Internacional, que assisti literalmente emergir do fundo das águas, e onde quase morri afogado certa vez. Na margem do Guaíba, tempos depois, minha família foi morar, atrás do edifício do IPE, nas proximidades do desaguadouro do esgoto da Avenida Ipiranga, na Rua Celeste Cobato, que na época era a última rua, quase na beira do rio e onde as dragas vomitavam areia dia e noite...
Como o meu rumo era o centro da cidade, onde tudo começou na minha vida de portoalegrense adotado, segui pela Borges de Medeiros por cima do Viaduto Açorianos. Este é um dos meus locais preferidos da cidade. Por ser uma região extremamente fotogênica, eu nunca me canso de estar sempre percebendo novos ângulos para fotografias que enquadrem a antiga Ponte de Pedra dos Açorianos. Enquadro no foco o gigantesco  monumento em ferro no gramado e o curvilíneo edifício do Centro Administrativo Estadual por trás, de preferência com as maravilhosas matizes coloridas do pôr de sol portoalegrense. Para o outro lado, é possível o enquadramento fotográfico da Ponte dos Açorianos em primeiro plano com as torres da Catedral Metropolitana ao fundo. Outro ângulo interessante, é o de captar a ponte de pedra com a chaminé da Usina do gasômetro ao longe.
O meu convívio com este sítio urbano vem desde muito tempo. Primeiro me lembro do antigo Clube Aimoré que promovia movimentados bailes de gafieira, cuja sede ficava numa rua sem saída do outro lado da ponte dos Açorianos, cujo acesso só se dava através da própria ponte, pois na outra extremidade da rua já era o rio. Depois estudei por sete anos na Escola Técnica Parobé, vendo as águas do Guaíba que batiam em suas oficinas irem de afastando, enquanto eu trilhava, aos trancos, estes caminhos para terminar o ginásio e o segundo grau.
Ao invés de subir a Borges de Medeiros em direção ao centro, entrei à esquerda na Demétrio Ribeiro, e parei diante do Cinema Capitólio, onde eu guri ia aos domingos trocar gibis com a meninada, mesmo quando não tinha dinheiro pra assistir aos filmes do Gordo e o Magro, do Chaplin, e os Hércules e Cowboys da época. Cine Capitólio cujo prédio está sendo ressuscitado, após décadas de períodos de abandono alternados com obras intermináveis de reformas. Depois caminhei várias quadras, passando pela Garagem do Bolinha que até hoje está lá, e parei na esquina com a Gen Auto, rua em que aluguei a minha primeira peça numa casa de cômodos com a minha primeira mulher, onde eu arredava a cama, ouvindo Led Zeppelin e Caetano Veloso, para escapar das goteiras, enquanto estudava o curso técnico de eletrônica em busca de um ofício para melhorar de vida. Antes disto, lá no fundão da Demétrio, no cruzamento com a rua  Cipriano Ferreira, é que encerrei a minha primeira infância, até os dez anos de idade. Quando eu vinha de férias do internato, jogávamos futebol no meio da rua e pelas calçadas; gurizada medonha, fugíamos pra tomar banho no Guaíba, justo no zona mais perigosa, por ser cheia de buracos traiçoeiros. Mas, por incrível que pareça, sobrevivi a todos os riscos, inclusive o de subir e descer correndo dos bondes, e estou aqui para contar estas passagens pela região decadente da Washington Luís e Ponta da Cadeia na década de 1960.

Dali subi a íngreme lomba da Cipriano Ferreira para o Alto da Bronze (em cuja praça, único terreno plano das redondezas, jogávamos bolinhas de gude) e, próximo da Duque de Caxias, me deparei com a mesma velha casinha de porta e janela direto pra calçada, onde minha família pela primeira vez constituiu um lar só seu na capital gaúcha. Antes, morávamos em uma peça de aluguel na rua Duque de Caxias, por onde também passei caminhando na sequência, mas cuja casa cedeu lugar a um edifício, perto da escadaria que desce para a rua Fernando Machado. Nesta altura da Duque de Caxias chega o topo da rua João Manoel, ladeira por onde desci, cruzando a rua Riachuelo em direção ao centro e, antes de chegar na Rua da Praia, sentei para apreciar o lugar onde tudo começou pra nós por aqui. Minha família chegou aqui, vinda de Bagé, no fluxo do êxodo rural dos gaúchos a pé, que vinham tentar a vida na capital. A casa de pensão que foi o nosso paradeiro e ganha pão não existe mais, no lugar foi construído o ginásio de esportes do Colégio Nossa Senhora das Dores. Entretanto, apesar de eu ter apenas cinco ou seis anos de idade na época (às vésperas de ir para o internato), me lembro perfeitamente da casa, da cozinha, dos seus cômodos e da escada que levava aos quartos de hóspedes no andar superior. Lembro do cheiro de mofo do seu porão, e principalmente de brincar de carrinho de lomba na calçada em frente do prédio.
 Desolado, perdido em meus pensamentos, dobrei na Rua da Praia e segui até a morada do poeta Mário Quintana, transformada em Casa de Cultura, onde recitei baixinho o seu famoso verso: Quando eu for, um dia desses / Poeira ou folha levada / No vento da madrugada...Cidade do meu andar...Cidade dos festivais de teatro e de cinema (de inverno e de verão), da Feira do Livro na praça da Alfândega, cidade que forjou a minha cultura de ser e perceber o mundo com o jeito portoalegrense de viver... Cidade do meu andar / (Deste já tão longo andar!) / E talvez do meu repouso... Talvez?  Controvérsias sociológicas à parte, comecei a refletir o que eu gostaria, afinal, que fizessem com as cinzas do meu corpo cremado “quando eu for poeira ou folha levada”.  Eu vi o Quintana morto no seu velório, e  achei que ele estava bem mortinho. Percorri mentalmente as possibilidades de locais para a destinação final dos meus resíduos sólidos, até que o encontrei e passo a torná-lo público com um leve sentimento de superação dos medos e preconceitos irracionais sobre a morte. 
Vai ser ali, junto à Usina do Gasômetro, onde os portoalegrenses costumam se sentar à tomar chimarrão nos finais-de-semana para apreciarem e até aplaudirem o espetáculo do sol poente se perdendo em suas cores derramadas no Rio Guaíba (que para mim será sempre Rio com R maiúsculo!), o local que elegi para ser o cais do meu destino final, cais dos meus restos mortais. Meu cais final será precisamente na margem, perto do “maconhódromo” (onde jovens por gerações consecutivas costumam fumar seus baseados) e no meio dos matacões de pedras que estabelecem uma faixa limítrofe entre a areia com grama e a água, em que as minhas cinzas tanto podem ser levadas para a areia ou engolidas pelas ondas, como também podem ficar sedimentadas neste interregno. Assim, nunca se saberá se uma das minúsculas partículas de poeira daquela região é meramente pó de areia ou cinza de baseado ou, ainda, se é parte do que foi o meu corpo, especialmente quando entrar no olho de alguém e o fizer lacrimar com os olhos tingidos de vermelho pela resplandecente morte do sol de cada dia... Ali estarei eternamente participando das rodas de violões, de chimarrão, de protestos, de comemorações populares e de todas as demais rodas que por lá se formarem... Ancorado no meu cais estarei sempre na roda.