Vulgos Qui-qui-qui, Cachorro, Boca e Faísca

Outro dia, aos passar por mim na esquina da D. Pedro I no pátio da Manutenção, o Cachorro (apelido de um ex-colega soldador) mexeu comigo: O Qui-qui-qui por aqui! Este é um antigo apelido meu, que ficou restrito ao pessoal do Setor de Solda e Serralheria, e que me foi dado pelo Boca de Cinzeiro, outro soldador. O uso dos apelidos era tão corriqueiro que acabamos não lembrando como eram os nomes dos nossos colegas de trabalho na Manutenção. O fato inusitado deste meu apelido de Qui-qui-qui ocorreu durante uma histórica  assembléia geral da AMPA, associação pré-sindical (embrião do SIMPA), em que eu tenso, como presidente da entidade, gaguejava mais do que nunca: “que-que-que isto, que-que-que aquilo”, tipo dando nó em pingo d’água...
Eu estava no microfone da tribuna tentando convencer a categoria, que lotava o plenário da Assembléia Legislativa com mais de mil municipários, a retornarem ao trabalho depois de três dias de greve no Governo Collares, nos idos de 1988... Era a primeira greve depois de vários ensaios em paralisações nos últimos anos da ditadura. Lá pelas tantas o Boca, grande pé de cana de açúcar (tomador de caninha), bêbado gritou me apoiando no fundo das galerias: - É isso aí Qui-qui-qui, apoiado! Seguiu-se uma hilária aclamação geral aprovando o encerramento da greve, garantindo o reajuste, o pagamento dos dias parados e a consolidação do movimento sindical dos servidores de Porto Alegre.
 De fato, o meu perfil nas redes sociais poderia ser: Vejo mal, ouço pouco e falo com dificuldades. É, pois uso óculos para longe e perto, operei um tímpano e sofro de otite, e gaguejo ostensivamente como uma charme peculiar. O ex-colega Faísca costumava me chamar carinhosamente de Gaguinho. Quando eu estava cursando jornalismo (fala sério, fica mal um repórter gago fazendo entrevistas, né?) cheguei a frequentar  o consultório de uma fonoaudióloga por uns três meses. Consegui parar de dizer “tlês” (feito o Cebolinha), pois aprendi a soletrar o “três”. Mas não tive persistência para desenvolver técnicas de domínio da gagueira (como o notório ex-gago Cláudio Duarte, ex-técnico e jogador do Internacional), até porque tive que abandonar o jornalismo pelo corte da bolsa da PUC pelo Dmae.
O Faísca, que tinha uma camioneta e fazia os carretos  das aparelhagens de sons  para os atos públicos do municipários, teve um AVC mas se recuperou das seqüelas.  Porém teve readaptação de função, deixou de ser motorista da Manutenção (sem deixar nenhuma foto nos meus arquivos) e virou operador de subestação do Dmae: continua correndo atrás das horas-extras...
O Cachorro, há alguns anos atrás, foi assaltado e levou uns tiros, esteve com o pé-na-cova, mas como um gato com sete vidas, voltou e continua trabalhando, é o último remanescente dos antigos do setor de solda (aos quais, vivos e mortos, faço aqui a minha homenagem!), o único que ainda lembra deste apelido com o qual eu simpatizava muito, mas que também já está em extinção.
O Boca de Cinzeiro já havia se aposentado antes de mim.  Recentemente soube que ele teve uma perna amputada em decorrência de excesso de açucar no sangue; dele guardo uma foto que considero como sendo uma das melhores do meu acervo como fotógrafo das Caras da Manutenção.
 Hoje em dia eu continuo vendo cada vez pior (devido à catarata), ouvindo cada vez menos (pela idade) e falando com dificuldades maiores ainda (pelos lapsos de memória da velhice); mas em compensação estou escrevendo tudo o que vejo, ouço ou falo como o Vulgo Qui-qui-qui que sempre fui. Dos verdadeiros nomes do Faísca, do Cachorro e do Boca eu não lembro mais, mas em compensação deles, dos apelidos e do meu nome eu ainda lembro.
- Valeu Vulgos Faísca, Cachorro e Boca de Cinzeiro!

O QUEBRA-CABEÇA DA VIDA

A vida é como um grande quebra-cabeça em que de início as peças são desconhecidas, mas que aos poucos vão se revelando e se encaixando, na medida em que vamos descobrindo quem somos realmente e  nos aceitando tal como somos.
Ao entrar no curso de Letras da UFRGS encontrei mais uma peça importante do tabuleiro da minha existência. Finalmente tive por tema de estudo a leitura dos “clássicos dos clássicos”, cheguei  no filão de ouro da literatura poética da civilização ocidental. Tive que ler nada menos do que Ilíada e a Odisséia  de Homero, Eneida de Virgílio, além da Divina Comédia de Dante e o Dom Quixote de Cervantes, e muito Shakespeare. Tudo de bom! Todas estas leituras estavam prometidas desde a minha juventude, desde aquela época eu tinha certeza que estava escrito nos astros que isto ia acontecer ao natural, no momento em que eu estivesse  pronto para receber esta overdose do mais puro alucinógeno na veia.
Mas antes de chegar nesta que julgo ser a minha praia, tive que minerar como engenheiro em outras jazidas menos literárias, jazidas de carvão e  de ferro em estágios, e de água no Dmae. Passei pelo filão também de ouro da Filosofia Ocidental, estudando as obras de Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Hegel e Nietzsche. Literatura-poética e filosofia são duas peças que se encaixam perfeitamente e me complementaram uma necessidade primordial, a qual eu nunca consegui entender a sua origem em mim (será de encarnações anteriores?). Só me restou acatar e me aceitar confuso tal como sou.
Ao completar 56 anos de idade e 39 anos de venda da minha força de trabalho, construí as duas  peças que juntas somaram o cabalístico número 95. Número este que me abriu a passagem para o portal do domínio do tempo, com o ganha-pão garantido pela aposentadoria do engenheiro que fui. Sinto-me como quem passou a vida toda em stand-by esperando aquele momento.
O mesmo fenômeno cósmico vejo acontecer agora com a minha mulher, que acabou de conquistar as peças do número cabalístico trabalhista que lhe dá direito à alforria da sina de ter que cumprir cargas de trabalhos diários para garantir o seu sustento, podendo a partir deste mês de agosto se aposentar  a qualquer momento que queira.
 Contudo, para a Magda querer sair tranquilamente, faltava ainda ela conseguir encaixar a peça da priorização da qualidade de vida do momento atual (se libertando do relógio de ponto),  com  a peça de melhorar o rendimento financeiro futuro, coisa que demandaria mais doze meses para incorporar a tal gratificação GDAE aos salário. Afinal, o Dmae para o qual ela trabalhou por mais de vinte anos já não existe mais; e com esta nova estrutura ela não mais se identifica e nem se sente estimulada a permanecer mais tempo na ativa em troca de um pouco mais de grana (cerca de meio salário mínimo) nos seus proventos.

Os astros conspiram a favor da soltura das amarras trabalhistas fazendo surgir demandas familiares emergenciais. Ao que tudo indica,  poderemos  acrescentar logo logo mais uma peça no quebra-cabeça de nossas vidas: a de um casal de aposentados do Dmae. E isso, pelo jeito, é pra já.
 Estamos sendo exigidos pelas circunstâncias e precisamos propiciar maior dignidade aos nossos pais que, caducando, se dirigem para a fatal barreira dos noventa anos de idade. Estão no triste purgatório da falta de autonomia da quarta idade (jovem, adulto, idoso e velhinho), em que penam antes de caírem no abismo dos desmanches dos quebra-cabeças das vidas de todos nós: no além.  
Estaremos todos condenados a cumprir sentença numa cela solitária de uma casa geriátrica antes de nos aposentarmos desta vida?...

O FOTÓGRAFO & A MADRINHA DA MANUTENÇÃO

          Uma expressão que ficou folclórica no imaginário do pessoal da manutenção foi a de “tocador de violino” (agregando o gesto de quem estaria tocando um solo de violino),  o que equivalia ao popular “enrolando o lero”. A expressão “tocar um violino” ficou usual na manutenção quando se queria elaborar ou responder algum parecer “espinhoso”, daqueles que é preciso dizer algo contundente sem deixar escrito mais do que o estritamente essencial para não melindrar nem se complicar.
         Devido a esta minha vocação literária reprimida de escritor (que estou aproveitando para  “soltar a franga literária” neste blog), cada vez mais fui assumindo esta função de “tocador de violino”, ou seja, de escrever textos por encomenda quando surgiam pepinos de grande porte, em que a manutenção precisava elaborar réplicas, pareceres e relatórios. Textos feitos tanto para levantar a bola e abrir uma discussão, como para matar a jogada e encerrar o assunto. Assim, acabei me tornando o tocador de violino oficial da DVM.
           Além de ter feito várias tocatas sinfônicas de violino textuais, igualmente devido à minha vocação reprimida de  fotógrafo, acabei me tornando também o retratista oficial da DVM. Com o advento das câmeras digitais, logo no início do novo milênio  tratei de criar a necessidade do Serviço de Manutenção do Dmae adquirir uma máquina para fins de cadastros fotográficos dos equipamentos e das estações de bombeamento e tratamento. Assim, como o fotógrafo oficial da Manutenção, acabei cobrindo fotograficamente todos os eventos de comemorações e confraternizações entre os servidores, criando amplos arquivos de coleções fotográficas em que registrei “caras & ações & locais” em centenas de fotos, de tudo e de todos.
          Esta semana o Fotógrafo da Manutenção voltou à ação para cobrir um evento especialíssimo, a festa em homenagem aos 45 anos de serviço da Engenheira Catarina, a Madrinha da DVM, que protocolou neste mês de agosto/2013 o seu pedido de aposentadoria no Previmpa, premida pela ameaça da aposentadoria compulsória por idade, com data marcada para antes do final deste ano. A Eng.ª Catarina dedicou mais de uma década além do tempo regulamentar exigido para se aposentar, e vai se afastar do seu ambiente de  trabalho contrariada por saber que ainda tinha muito a contribuir ao Dmae, órgão que ela ajudou a consolidar desde os seus primórdios com um nível de excelência em saneamento público em âmbito nacional.
Em dezembro de 2012 eu postei aqui um texto denominado “A Madrinha da DVM”, em que contava que, em termos organizacionais, houve três momentos distintos marcantes a serem destacados nesta longa história da Catarina como engenheira da Manutenção do Dmae. Seu protagonismo veio desde os remotos tempos da EME (antiga sigla de Engenharia de Manutenção), passou por todo o meu tempo na ativa, ainda como DVM (Divisão de Manutenção), e se estendeu até a recente reestruturação do Dmae para GEMAN (Gerência de Manutenção), que vem a ser o seu quarto e derradeiro momento histórico, a era de extinção dos últimos Dinossauros.
Na prática não é ainda a sua despedida definitiva, pois imagino que ela deverá aguardar a portaria de aposentadoria na ativa por mais alguns meses, fazendo o que sempre mais gostou de fazer: trabalhar na Manutenção de Equipamentos do Dmae! 
Contudo, como acertadamente ela não quer que se promovam fortes emoções no exato momento do último dia de sua  pioneira, longa e destacada carreira profissional, o festejo em sua merecida homenagem foi antecipado de forma a não ser curtido sob o clima dramático da  despedida. Pelo contrário, foi uma festa alegre de agradecimento de todos os que tiveram o privilégio de conviver com a Engenheira  Catarina. Festa em reconhecimento aos  longos anos de sua dedicação e amadrinhamento  às várias gerações de membros da grande irmandade dos servidores da Manutenção de Equipamentos do Dmae.
 - Valeu muito Eng.ª Catarina Reina Cánovas, abençoada seja a Madrinha da Manutenção!


A LEGALIZAÇÃO DA MACONHA

Vejo sinais de novos tempos: O Uruguai aprovou a legalização da maconha e a Globo levou ao ar no Fantástico uma matéria de 18 minutos tratando do polêmico tema. Parece que a emissora resolveu contribuir para que o país encare essa questão da legalização da maconha. É uma discussão que passa a ser principalmente de saúde pública e não só de segurança e criminal.
Dois Estados nos EUA liberaram a  maconha para uso recreativo para maiores de 21 anos (Colorado e Washington), e 19 permitem a venda para fins medicinais, mediante receita médica. Cientistas já comprovaram a eficiência do THC, princípio ativo da maconha, no tratamento de náuseas e vômitos provocados pela quimioterapia, para pacientes que sofrem de glaucoma e falta de apetite. Mas os médicos nos EUA se baseiam em mais de 20 mil pesquisas para receitar maconha para até 190 enfermidades. Entre elas, estresse, insônia, ansiedade, cólicas menstruais, dores nas costas, convulsões e epilepsias. Na prática é uma liberação quase geral!
A indústria legal da maconha nos EUA já tem mercado bilionário. É a primeira vez na história que o capitalismo tem uma indústria com 100 bilhões de dólares, isso só nos EUA, sem que nenhuma marca atue nesta área. Não tem ainda nenhuma Coca-Conha, mas isso não vai continuar assim. Vários empresários americanos já estão criando as primeiras marcas de maconha do mundo, com planos de desenvolverem franquias internacionais. Até cursos profissionalizantes estão sendo ministrados para ensinar os empreendedores a plantar e a industrializar os seus subprodutos legalmente, repassando aos seus clientes a segurança de que não estão mais financiando o crime organizado.
Vários ex-presidentes americanos já declararam que fizeram uso de maconha (Bill Clinton, G. Bush e Barack Obama), também várias celebridades confessaram que já queimaram um fumo (Brad Pitt,  Angelina Jolie e Jack Nicholson).  O ex-presidente do México, Vicente Fox, defende que o país se torne um grande exportador mundial da maconha, para acabar com os cartéis da droga que já dominam um terço das prefeituras mexicanas. Por aqui, os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (ostensivamente) e Luiz Inácio Lula da Silva (timidamente) são favoráveis à descriminalização das drogas. Argumentam que a política de repressão não reduziu os índices de violência ou a quantidade de usuários, pelo contrário, a repressão policial causou mais mortes de jovens que o próprio uso da droga. O tratamento mata mais que a doença. Para eles, é preciso mudar o eixo da questão, tratando o usuário, não do ponto de vista da segurança, mas da saúde pública.

Os  defensores brasileiros da legalização miram-se no exemplo de países como Portugal, em que a prisão de usuários foi substituída por oferta de tratamento médico. Em vez de enfrentar prisão e multas, o governo português permite que usuários eventuais e frequentes portem a droga em pequenas quantidades. Se alguém é pego com menos de 25 gramas de maconha ou 2 gramas de cocaína, por exemplo, supõe-se que se trata de um usuário, não de um traficante. A droga é apreendida, ele é liberado para ir para casa e recebe uma intimação para conversar com um assistente social. Se ao longo da entrevista for constatado que se trata de um dependente químico, ele é encaminhado para um tratamento médico. Senão, ele volta para casa livremente. Com esta política a violência policial e a mortalidade de jovens diminuiu bastante em Portugal.
No Brasil, desde 2006, não há pena de prisão para usuários de drogas. Pela lei, quem é apanhado com “pequenas quantidades” (não definida legalmente!) de substâncias ilícitas tem a droga apreendida, é levado à delegacia (putz!) e depois a um juiz. Ao juiz, cabe escolher entre três punições: prestação de serviços à comunidade, curso sobre os males das drogas e advertência. Não dá cadeia, mas pode dar dependendo do tipo de abordagem policial, especialmente se flagrado no tenso momento da comercialização entre fornecedor e comprador nos becos escuros do submundo. Esta descriminalização, portanto, mantém refém dos traficantes e dos policiais corruptos tanto os usuários de classe média como os jovens favelados recrutáveis como vendedores ambulantes de  entorpecentes, os quais são trucidados como vítimas dos combatentes oficiais às drogas, Tropas de Elite que só pegam os pés de chinelo.
 O Uruguai está resolvendo a problemática do combate ao tráfico pelo viés socialista, ou seja, tornando de competência do Estado regulamentar o cultivo, a distribuição e a venda da maconha em farmácias credenciadas, mediante um registro dos cidadãos usuários. Está juntando a segurança com a saúde pública. Os EUA estão resolvendo pelo viés capitalista, se apropriando através da iniciativa empresarial privada deste mercado bilionário até então cativo do narcotráfico.  Estão juntando o útil ao agradável: ganhando dinheiro e enfraquecendo o poderio econômico das facções criminosas.
Os usuários brasileiros da erva canabis não podem ter que continuar expostos às práticas criminosas dos traficantes e de policiais corruptos, para fazerem uso de um produto que sabidamente não é pior que outras drogas legalizadas, como o cigarro e o álcool. O tabaco, que o Brasil é o maior exportador mundial da folha da droga, já teve sua publicidade proibida na televisão, mas o país continua criminosamente permitindo o incentivo publicitário ao alcoolismo sob patrocínios de cervejarias. O percentual de usuários que se tornam viciados em maconha é muito menor do que os destas drogas socialmente aceitas. Este é o ponto que, com todo este respaldo de nomes famosos e das novas abordagens mundiais de descriminalização da droga, pessoas comuns como nós que já fumaram seus baseados e curtiram numa boa a Marijuana, estão manifestando indignação com esta hipocrisia.
Nós, coroas cinquentões e sexagenários de hoje, que fomos jovens da geração hippie e que vivemos intensamente aquela época de loucuras “on the road”, fomos os maiores puxadores de fumo de todos os tempos! Feito Neruda, confesso que vivi: fui artesão caroneiro que expunha  artesanatos nas praças pelas cidades por onde passava; vivenciei comunidades de hippies latino-americanos  no Uruguai (que já era o paraíso das drogas de anfetaminas)  e, é claro, me chapei um bocado!
 Nós, malucos convertidos em caretas pra ganhar a vida e constituirmos nossas famílias, temos agora a obrigação de libertar as novas gerações de malucos beleza (os nossos filhos e netos que também querem curtir a erva numa boa!) das garras criminosas dos traficantes e dos policiais corruptos:
- PELA LEGALIZAÇÃO DA MACONHA JÁ!