PITINGA, O TEU POVO TEM ÁGUA!

          A Imperadores do Samba é a grande campeã do Carnaval 2014,  a escola ganhou com o tema sobre o Luis Fernando Veríssimo e conseguindo levar o escritor como destaque de um carro alegórico na passarela. Mas a vermelho e branco ganhou por apenas um décimo da União da Vila do IAPI. A Estado Maior da Restinga ficou em terceiro lugar homenageando a cantora Elis Regina, que era do bairro IAPI... Sem Elis na avenida do sambódromo, o puxador de samba agitou as arquibancadas soltando o grito de guerra da escola:
-Tinga, teu povo te ama! 
Por falar em Tinga (da escola, não do jogador de futebol que foi vítima de manifestações racistas latino-americanas por ser negro), me veio recordações da minha vivência na Vila Pitinga, localizada no final da Lomba do Pinheiro e divisa com Viamão. Lembro que quando eu já tinha entrado na reta final rumo à bandeirada da aposentadoria, dei início ao processo de “feng-shui” no meu local de trabalho, que mais ou menos equivale ao “Sistema 5S” do PGQP, ou seja, de examinar as tralhas guardadas e engavetadas a fim de desovar as cargas desnecessárias, caducas e inúteis. A cultura milenar oriental do feng-shui visa otimizar as energias, evitando-se o desperdício energético despendido para carregarmos nas costas coisas sem uso e sem previsão de serventia.
Sozinho eu ocupava dois módulos gaveteiros, de 4 gavetas em cada um, e mais um armário com 5 prateleiras, atrolhadas de papéis (relatórios, polígrafos, manuais, etc.); isto depois de ter repassado meses antes um outro armário ao colega Álvaro, que retornava a ocupar a nossa sala, depois de exercer na sala ao lado a função de Diretor da Manutenção por cerca de três anos. Como o Jack estripador, resolvi começar por partes, tendo por meta chegar ao final do ano de 2011 com todas as gavetas e prateleiras dos armários totalmente esvaziadas para o momento da despedida da minha sala, da minha mesa e dos meus colegas de trabalho. Começando de baixo para cima nas prateleiras do armário, decidi atacar de imediato  uma caixa que continha uma tarja de identificação escrito PITINGA.
             Nesta caixa estavam arquivados estudos e projetos de um trabalho pioneiro no âmbito do DMAE, que foi o de exploração de águas subterrâneas. Com apenas dois ou três meses decorridos da minha formatura na Engenharia de Minas da UFRGS em 1992, antes mesmo de ser nomeado como Cargo em Comissão (CC) no DMAE, havia recebido a incumbência do Engº Valdir Flores, então diretor da Divisão de Planejamento, de preparar a licitação de um estudo geológico  visando um mapeamento e identificação de locais propícios para a perfuração de poços artesianos, bem como a contratação da execução destes poços com as suas respectivas redes de distribuição para a comunidade da Vila Pitinga. 
Os ânimos da população estavam exaltados naquela região da cidade devido à permanente falta de água. Foi uma experiência muito interessante eu poder usar de imediato os meus conhecimentos acadêmicos de Engenheiro de Minas, e ficar por semanas inteiras fazendo expediente nos matos e morros da zonal sul, junto com o pessoal da empresa que foi contratada para executar o serviço sob minha fiscalização técnica. Resultou que perfuramos três poços de cerca de 80 metros de profundidade dentro e no entorno da Vila Pitinga,  próximo da Vila Restinga. Foram dois poços com capacidade de produção de 3m3/h e um de 10m3/h de água captada de aquíferos confinados nas rochas, com os quais pudemos passar a dizer:
- Pitinga, o teu povo tem água!
Com o sucesso desta experiência, em 1995 o DMAE me incumbiu de contratar  o mapeamento hidrogeológico e a prospecção geofísica da Estrada das Quirinas. Resultou que perfuramos mais dois poços tubulares nas Quirinas (um com vazão de 15 m3/h!) e construímos um reservatório no sistema, que passou a abastecer regularmente com água subterrânea a comunidade de 100 lotes do Jardim Monte Carlos, e também pudemos passar a dizer:
- Quirinas, o teu povo tem água!
O abastecimento público com água de captação subterrânea na zona sul foi adotado como uma solução emergencial provisória, até a realização das obras projetadas pelo DMAE de Interligação da Restinga com a Lomba do Pinheiro. Como de fato aconteceu, a região passou a ser abastecida (tanto a Pitinga quanto as Quirinas) pela Restinga, com água captada em Belém Novo. Mas, por mais de dez anos, estas comunidades foram abastecidas através de poços tubulares de água subterrânea, até que estes poços foram desativados, pois a partir daí pudemos passar a dizer:
- Porto Alegre, 100% do teu povo tem água!

O “APITA JOÃO!”

           O João, que estava entre aqueles aposentados desaparecidos há muitos anos, outro dia reapareceu. O encontrei no “Caminho dos Aposentados”, na trilha que leva do Gabinete Médico do Dmae até a farmácia Panvel conveniada mais próxima, que fica no posto de gasolina na Av. Ipiranga. O cara trabalhava no refeitório da DVM, num tempo em que a cozinha fazia café com leite pela manhã para oferecer para todos os funcionários que quisessem.  Nessa época a cozinha também fornecia café preto em térmicas para todos os setores e equipes, tanto pela manhã quanto pela tarde, e até para o pessoal em serviços extraordinários noturnos e de finais de semana.
             Naquele tempo, antes do Prefeito Collares acabar com o fornecimento de café para os servidores (medida tomada com estardalhaço, como sendo uma grande economia para os cofres públicos), o refeitório era um local de encontro e de recreação da peonada. Era onde se jogava dominó e carteados rapidinhos, nos intervalos do trabalho. É, havia intervalos do trabalho! A coisa era super ordenada, havia horários limites para tudo: para encerrar o café da manhã, para a hora do lanche matinal e do vespertino (que ocorriam no meio de cada turno de expediente) e para abrir o refeitório para o almoço. Fora destes horários o refeitório ficava fechado para os demais servidores que não trabalhassem na cozinha. Na época do João, era a Vera, hoje já falecida, quem fazia o café para todos e também o almoço para aqueles que contribuíam financeiramente para a compra dos mantimentos.
            Então, todos estes horários para abertura e fechamento do refeitório eram anunciados por uma sirene que soava no páteo de DVM. Como na década de 80 ainda não havia automações eletrônicas, a tal sirene era acionada manualmente pelo João. Assim, quando se aproximavam os respectivos horários de liberar o refeitório para o livre acesso da peonada, o pessoal começava a gritar, pelas portas dos pavilhões, por pura algazarra coletiva, até a  sirene apitar:
- Apita João!
           O João, que no Dmae trabalhava como auxiliar de serviços gerais com a nobre função de apitar a sirene, costumava fazer biscates como garçom em bares e eventos noturnos. Seguidamente, portanto, ele vinha trabalhar “virado”, direto da sua atividade de garçom e aproveitava para recuperar o sono durante os horários em que o refeitório estava fechado. Costumava dormir deitado nos bancos de madeira entre as mesas. Então, para não correr o risco do dorminhoco perder a hora de apitar a sirene, o pessoal começou a  tradição de gritar o que depois virou um folclore:
- Apita João!
           Com o passar do tempo veio a inexorável evolução tecnológica, e a sirene foi então conectada diretamente ao relógio ponto, de forma que ela passou a apitar automaticamente, sem precisar mais da intervenção do João. Contudo, pelo divertido espírito de gozação, permaneceu o ritual de anunciar os horários de abertura do refeitório com os gritos pipocando pelo pátio:
-Apita João!
            Mas o João passou a se irritar com aquela ”zoação” pro seu lado todo o santo dia nos horários de se liberar o refeitório para a peonada, e começou a responder aos gritos:
- Quem apita é a mãe!
            Por um longo período ainda se ouvia esta trova no páteo da DVM:
- Apita João!
- É a mãe!
            Assim, o João acabou incorporando a sua função como um apelido, e passou a ser conhecido como “O Apita João!”.
Quando o vi eu gritei do outro lado da rua abanando para ele:
-Apita João!
-É a mãe! – Respondeu ele, rindo com sua boca nua escancarada. 
            Então conversei rapidamente com o Apita João no Caminho dos Aposentados, ele disse que continuava atuando como garçom. Mas vendo ele tão envelhecido e completamente sem dentes, saí convencido que com a decrepitude da idade a gente não apita mais nada mesmo...
-Valeu Apita João!