VOTO ÚTIL CONTRA O SEGUNDO TURNO

Pra não dizerem que não falei  de eleições, falarei das flores que brotaram em todos os gramados dos canteiros centrais das ruas e avenidas da cidade. São todas botanicamente semelhantes, começaram pequenas e a medida que se aproxima o final do período de campanha eleitoral, vão crescendo até reproduzirem a imagem dos candidatos em tamanho maior que o natural.  Um assume a forma estilizada da delicadeza feminina de um vaso com flor,  outro se identifica como sendo uma estrela da constelação das Três Marias (junto com o Governador e a presidenta), outro aparece segurando cartazes do tipo daqueles “compro e vendo ouro” costumeiros no centro da cidade: Compro e vendo obras pra copa! Outros tentam aparecer para a fama se destacando como podem no meio daquela poluição visual de cartazes...
Lembro que comentei aqui no blog há dois anos atrás o resultado geral do pleito eleitoral de 2006, que re-elegeu Lula Presidente, em que a campanha pelo voto nulo havia crescido tanto que acabou por arrombar espaços nos jornais para desacreditá-lo enquanto um movimento sociologicamente válido. Voto nulo era aquele em que se fazia a catarse de insultar ou articular um protesto coletivo por escrito nas células. Tem o seu valor histórico por seu potencial anarquista! A verdade é a seguinte, no primeiro turno para Presidente, tanto em 2006 como em 2010, somando os votos brancos (2,73% e 3%), respectivamente na re-eleição do Lula e na eleição da Dilma,  com os nulos (5,68% e 5%) e com as abstenções (16,75% e 18%), totaliza mais de 25%, ou seja, um em cada quatro eleitores brasileiros (30 milhões) não votaram em ninguém naquelas  duas eleições!!!!
Por absurdo, mesmo que 99% dos votos sejam invalidados (como nulos ou brancos), a eleição dos candidatos (por pior que sejam) estará garantida. Uma eleição só pode ser anulada por fraude em mais de 50% dos votos e constatada pelo Tribunal Eleitoral. Fora as fraudes, só interessam os votos válidos, melhor dito, só são válidos os votos que interessam ao simulacro de democracia que beneficia quem tem maior poder econômico de propaganda. O sistema só precisa que o eleitor compactue com a farsa, participando para garantir a sua continuidade em harmonia, sem rupturas. Compactuar com este simulacro de democracia é tido como um “dever cívico” e aos que se rebelam taxam de anarquistas alienados, de anti-democráticos, são acusados de todas as piores infâmias e traições contra a pátria amada, ame ou deixe-a,  salve-salve!...
Depois de ter entendido o mecanismo da democracia do voto obrigatório à cabresto nas eleições  anteriores, nem me dou mais ao trabalho de corcovear a favor do voto facultativo como um ato de liberdade e não de obrigação sujeito a sanções penais. Pesquisa divulgada esta semana constatou que apenas 40% do eleitorado votaria se o voto não fosse obrigatório. Gato escaldado,  tenho sempre o voto nulo na manga, e fico observando criticamente o teatro de fantoches do horário eleitoral na televisão, louco para ser envolvido por uma proposta nova contagiante.  Assim, na eleição anterior usei o meu voto para semear o verde ecológico na política, votei por um progresso sustentável da nação. Mas o Partido Verde amarelou preferindo continuar nanico e sobreviver como parasita na sombra dos grandes.
Uma das novidades desta eleição é a tal de “Lei da Ficha Limpa”, que é referente às contas dos gestores públicos, dos secretários estaduais e municipais, prefeitos e governadores. A inelegibilidade alcança também os políticos que forem condenados pelos crimes contra a economia popular, a fé pública, a administração e o patrimônio público. Como malandro de colarinho branco nunca é condenado (sem direito a recurso), nem o  Maluf resultou inelegível!    Alto lá: há luz no fundo do túnel? Os corruptos e  corruptores nunca eram condenados  antes, algo mudou com a condenação de políticos no julgamento do Mensalão pelo STF (instância sem possibilidade de recurso)...
Mas mesmo em pleno julgamento do Mensalão Petista (aperfeiçoamento do Mensalão do PSDB), com  cobertura midiática voto-a-voto dos juízes capas preta no Big Brother do Supremo Tribunal Federal, ninguém politiza eleitoralmente o que está sendo escancarado sobre as milionárias compras de votos por suborno no Congresso Nacional. Seria estranho tanto silêncio nesta  campanha eleitoral (com tanta munição disponível e ninguém  jogar sequer pedras no telhado do adversário) se não fosse lógico: está todo mundo com o rabo preso!
 Resumindo as opções eleitorais portoalegrenses: resulta que  são todos variantes do mesmo cinza. Tanto faz se eleger Fortunati, Manuela ou Vila (os outros são meros figurantes); o problema é que essa ladainha de engambelação televisiva e poluição visual com propaganda de mal gosto pelas ruas vai se arrastar torturantemente  por mais um mês se houver disputa do segundo turno. Por isso, um válido voto útil  seria votar para evitarmos o segundo turno eleitoral, ou seja, votar em quem estiver na frente nas pesquisas de boca de urna para nos livrarmos mais rapidamente desta palhaçada  despolitizada que são as campanhas eleitorais municipais. Mas mesmo o voto útil precisa de uma politização mínima como critério: sou pelo voto útil desde que não seja na candidatura do partido autor da nefasta Reforma Florestal, nunca!, prefiro retornar ao anárquico e libertário voto nulo.
 Por estas e outras,  recente pesquisa revela que 92% da Geração Y (Y do YouTube, jovens nascidos entre 1982 e 2000) não se interessam por política. Nossa geração (pós-cinquentões)  esteve com a faca e o queijo na mão para construir um novo cenário nas relações políticas, teve a chance de iniciar uma cultura  que conquistasse o engajamento das novas gerações pela esquerda, ao colocar os trabalhadores no poder na figura de um operário como presidente do país. Fizemos o mais difícil, conquistar o poder, mas deu no que deu. As novas lideranças se  revelaram geniais mega new corruptos (criando valeriodutos) mas incompetentes corruptores ao provocarem a denúncia suicida do esquema (o safado do Jefferson até que merecia o benefício da delação premiada). Assim,  só fizemos agravar a descrença nos políticos e, pior, na política!
COLA ELEITORAL :
 1) Voto útil no que estiver na frente pra não haver o segundo turno;
 2) Voto nulo, apesar de toda  a dificuldade operacional imposta pela urna eletrônica à execução do voto nulo  e da indução com a existência de um botão exclusivo escrito “voto em branco”,  saiba como não se deixar tutelar e exercê-lo se quiser: Digite um número inexistente (99999), o qual só será aceito após uma emissão de erro em letras miúdas, anunciando que, caso você “confirme”, este “erro” será computado como “O Terrível Voto Nulo!”. 
3) E pra vereador?...Apenas 18% lembra em quem votou na eleição passada. Para não esquecer, vote num amigo seu, ou em um amigo de um conhecido seu, ou num amigo meu de lombo curtido e viciado em política: Lúcio Barcelos, ex-petista hoje no PSOL (50.001). 
Vote limpo!

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Odisséia Cotidiana: O Meio dia

A manhã de um aposentado passa voando!...Peguei o carro empoeirado e embarrado pelas patas dos gatos do estacionamento que fica no meio da quadra da Rua Barão do Gravataí, entre as ruas Baroneza do Gravataí e Múcio Teixeira, e saí em direção a esta  última: buzinei na esquina cumprimentando o dono da cantina italiana, e dobrei para a direita em direção à Av. Ipiranga, onde segui para esquerda, no sentido centro-bairro.
Este trajeto conheço bem, percorro há mais de dez anos, até quatro vezes por dia, considerando ida e volta. Faço isso desde quando a Múcio era uma rua tranqüila, com os guris jogando bola nas calçadas e as famílias tomando chimarrão ao entardecer sentados em cadeiras de praia em frente aos prédios (sem grades), isto antes do prefeito Raul Pont construir  uma ponte ( a ponte do Pont!) sobre o arroio Dilúvio e incluir a rua como dipolo de desafogo do trânsito da avenida Getúlio Vargas. Agora, com mão dupla e estacionamento dos dois lados, pra passar um caminhão o carro do sentido contrário tem que encostar no meio fio, e o simples atravessar a rua é um risco...
Entretanto, mesmo os caminhos mais trilhados por nós sempre reservam alguma surpresa em nuanças e recantos, ou ângulos de visão, que sempre nos passaram despercebidos. Na avenida Ipiranga o veranico, que está ocorrendo em pleno mês de agosto, antecipou a primavera e fez florir os ipês , colorindo o meu  trajeto pela margem do arroio até o bairro Santana.
São muitas árvores enfeitando o caminho feito imensos ramalhetes de flores rosas, desenhando tapetes de flores coloridas caídas no chão ao redor do pé de cada uma delas. Notei que há poucos ipês amarelos, deveriam plantar mais, pois alegram muito a paisagem. É mais rara ainda a espécie de ipê com flores cor champanhe, que dão um tom melancólico de quadro de aquarela ao visual, tem apenas um pé em frente ao jornal Zero Hora e outro na altura da esquina com a rua  São Francisco.   
Não localizei nenhum ipê roxo neste trecho, é uma pena, são os mais bonitos sob a luz do sol forte...mas existe em algum outro ponto da Avenida Ipiranga (foto da internet).
Ouvindo no rádio do carro o programa nativista Cantos do Sul da Terra, que estava comemorando um ano de sucesso de audiência na rádio FM-Cultura, pela  avenida Ipiranga fui observando a nova personalidade da minha cidade que está emergindo, ainda que de um jeito meio torto, cheia de  equívocos de projeto e de concepção, mas está se criando a condição objetiva para que o ciclismo seja incorporado aos hábitos dos portoalegrenses: está nascendo a  primeira ciclovia!
 Enquanto no rádio o locutor ia “cevando a palavra” com músicas do Atahualpa Yupanqui  e fazendo leituras de textos de Julio Cortázar (receitas de como subir a escada, de como chorar, de como cantar), fiquei imaginando como poderia ter sido diferente o  meu ir e vir estes anos todos, percorrendo os mesmos três quilômetros em linha reta pela avenida Ipiranga, desde o meu edifício até o meu local de trabalho, apenas que pedalando com segurança num saudável estilo de vida europeu...Realização que ficará para os nosso filhos, especialmente as filhas (tenho visto muito mais meninas do que meninos ciclistas) que já estão ousando enfrentar o trânsito insano dos automóveis com suas bicicletas e mobilizando politicamente a opinião pública através do Movimento Massa Crítica, para a humanização do tráfego de veículos nas vias públicas da cidade: Menos motor e mais amor.
Ao cruzar pela avenida  João Pessoa, vi três garças brancas voando entre as  sete palmeiras californianas (a oitava morreu pouco tempo atrás), as únicas palmeiras do mundo plantadas sobre uma ponte. Fui acompanhando a beleza plástica do voo das garças, paralelo ao trajeto do meu carro, até eu ser detido por um sinal  vermelho no cruzamento  com a rua Silva Só.
As aves seguiram em frente para pescar mais adiante no esgoto do arroio  Dilúvio e eu, depois de receber o sinal verde e passar pelo cruzamento com maior índice de acidentes da capital (onde nunca presenciei nenhum!), dobrei para a direita na primeira rua seguinte, que é a rua São Francisco, onde cheguei ao meu destino na esquina com a avenida Princesa Isabel, local de trabalho da minha mulher.
Assim, com o carro recolhi a família dispersa pra almoçarmos reunidos e  retornei todo o trajeto feito pela avenida Ipiranga, até chegarmos num restaurante buffet na avenida Getúlio Vargas, com opções vegetarianas e carnívoras, para agradar a gregos e troianos. O assunto da reunião almoço familiar foi o de saber quais peças teatrais gostariam de assistir do Festival POA EmCena, já que eu pretendia comprar os ingressos durante a tarde.
Nunca vamos ao teatro, a não ser no mês de  setembro, quando  grandes espetáculos internacionais e nacionais são trazidos pra cidade, ocasião em que, devido aos fortes patrocínios, os preços subsidiados se tornam acessíveis para grandes parcelas da população. É quando a cultura da arte cênica entra no nosso cardápio, então, como membros típicos da nova classe média emergente no país, nos fartamos assistindo a mais de  uma peça por semana. Minha mulher sugeriu que fosse uma peça em espanhol, mas que não fosse com atores argentinos (que falam muito rápido). Já  meu filho, ressabiado dos castelhanos dos EmCena dos anos anteriores, sugeriu que fosse uma peça nacional,  de mais fácil entendimento.
E assim passou correndo o meio dia de um aposentado.

Odisséia Cotidiana: Os gatos da minha rua


A  manhã de um aposentado passa voando, quando se vê já é hora de sair correndo para se conectar com o restante da família  que continua aprisionada ao mundo do trabalho. Saí caminhando pela  Travessa Pesqueiro e, antes de chegar na esquina com a Rua Barão do Gravataí, do tapume de um terreno baldio, como de costume, saiu um gatão amarelo de rua.
 O bicho foi se esgueirando entre o meio fio da calçada e os carros estacionados, enquanto miava com veemência pedindo ração. Na quadra há vários vizinhos alimentadores dos gatos de rua: naturalmente que os felinos reconhecem de longe os humanos dos quais podem se aproximar amistosamente, e de quais é melhor retornar correndo para a fresta do tapume e se abrigar no matagal do terreno baldio, onde vivem vários gatos ariscos.
 É curioso como os cães de rua desapareceram  do bairro (será que de toda a cidade?), sem predadores os gatos estão tomando conta do pedaço. Quem é da vizinhança e do grupo dos amistosos, de tanto transitar e lidar com os gatos de rua, acaba também lhes reconhecendo  e atribuindo-lhes nomes específicos, geralmente em função da pelagem de cada um: o ruivo, o chumbinho, o malhado frajola (preto e branco)...
Os gatos, como os pivetes de rua, também têm suas gangues e um território que dominam. Do outro lado da Rua Barão do Gravataí o território é dominado por outra turma de gatos, também criados soltos mas com residência fixa e alimentação regular fornecida pelo protetor deles.  Mesmo sendo parte do grupo dos humanos amistosos com as duas turmas de gatos, tenho mais convívio com os gatos da Barão, que vivem no pátio dos boxes de estacionamento de aluguel, onde eu guardo o meu carro e para onde me dirigi.
A população de felinos ali é variável, seguidamente somem alguns, outros morrem atropelados (eu próprio tenho uma morte nas costas, atropelei um filhote inexperiente) e alguns, mas raramente, morrem por velhice.
 Em uma década estacionando o meu carro no território destes felinos, acompanhei várias gerações de crias das crias dos mais antigos, até que recentemente, todas as fêmeas foram submetidas à cirurgia de esterilização e os gatos foram castrados para ficarem mais sossegados. Desde então a população do território vem se reduzindo drasticamente: de mais de uma dúzia para menos da metade.


                   Talvez por isso mesmo, ocorreu um fenômeno de imigração de uma elemento de uma tribo para a outra, que foi justamente este gatão amarelo que me seguiu a pouco até o outro lado da rua, o Boca Grande (nome que dei por ele ficar sempre miando quando me vê). Decerto, vendo que as condições de vida por lá eram melhores, foi se aquerenciando, insistindo numa aproximação sem aceitar as provocações para brigas com os gatos e os esculachos dos humanos.
 Tanto persistiu o gatão amarelo conversador, o Boca Grande, até que conquistou um espaço nas tigelas de rações sob os telheiros dos boxes dos automóveis; ganhou dupla nacionalidade, sem nunca deixar de ser um estrangeiro hostilizado permanentemente pela gata branca, a matriarca e chefe do clã da Barão.
 Eu sou extorquido pelos gatos de rua da Travessa Pesqueiro, numa espécie de pedágio que tenho que pagar para entrar em casa de noite, ao voltar a pé após deixar o carro e alimentar a turma de gatos da Barão, de modo que mantenho uma reserva técnica de ração, como propina, dentro da caixa de correio junto à grade do portão externo do  meu prédio . Faço como muitas pessoas que carregam sempre algum dinheiro no bolso para terem o que fornecer  aos ladrões em caso de serem assaltados, por serem os gatunos coisas de convivência costumeira. 
 Como eu ia dizendo, a manhã de um aposentado passa voando!...

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ODISSÉIA COTIDIANA

           Este texto é o diário de um dia, um Bloomsday meu. O “Bloomsday” é um feriado comemorado na Irlanda em homenagem ao livro Ulisses, de James Joyce (o mestre em escrever “fluxos de pensamentos”). É o único feriado em todo o mundo dedicado a um livro literário, obra que relata em cerca de mil páginas o que ocorre em apenas um dia na “Odisséia Cotidiana” da vida comum e nada heróica de um Ulisses na homérica modernidade.
          Este texto é um exercício literário joyceano, em que tento registrar minha Odisséia Cotidiana, do que andei fazendo e pensando (com fluxos de pensamentos) num único dia de aposentado, que será publicado aqui no blog em cinco postagens: A Manhã, O Meio Dia, A Tarde, O Entardecer e A Noite.

Odisséia Cotidiana: A Manhã
         São oito horas, tomo café da manhã com leite e nescafé, como pão dormido. Guardo as compras de ontem trazidas em sacolas plásticas do supermercado. Penso: As sacolas estão sendo racionalizadas para um uso consciente: as sacolas servem em reuso para ensacar seletivamente os lixos domésticos: a coleta seletiva possibilita a destinação correta dos dejetos para seus respectivos destinos finais: para a reciclagem ou para o aterro sanitário. Fazer a triagem do lixo é uma postura politicamente correta do cidadão, sujeito que faz a sua parte, mesmo sabendo que o percentual de reciclagem sempre será ínfimo e nunca vai resolver o problema da poluição do planeta e da degradação das condições de vida para as próximas gerações. Seguimos em nossa odisséia diária velejando sem leme rumo ao suicídio coletivo da espécie, e seguimos para o Apocalipse sem parar de mamar por um momento o leite longa vida das tetas de tetra-pack (com uma camada de alumínio).
         Lixo eletrônico: anteontem pifou o meu aparelho de DVD-Player, trancou com o filme “A Doce Vida” de Federico Fellini dentro do equipamento. Ainda bem que a pane foi depois de eu assistir ao clássico filme em preto e branco: estou preenchendo as lacunas deixadas pela pobreza na minha formação cultural. É sempre assim, dizem, desgraça nunca vem sozinha: ontem foi a vez do aparelho de TV da cozinha se apagar de vez, morte súbita. Tudo tem  uma vida útil limitada, mas antes de desovarmos nossos velhos queridos como sucatas, temos que consultar o diagnóstico dos especialistas. Velhice não é o fim, mas começa a dar defeito com mais freqüência por estarmos cada vez mais próximos do vencimento da nossa vida útil: e pra lá vamos!
No espelho embaciado do banheiro me vejo dando banho no meu corpo e não me reconheço nele: nem no corpo nem no espelho: ele é meu corpo, mas eu não sou ele. O corpo humano é uma máquina muito bem bolada,  porém também sujeita à manutenção e concertos e à desova como lixo orgânico em cerimoniais metafísicos quando termina a sua vida útil. Retiro do ralo do box do chuveiro  os cabelos caídos que já fazem falta na cabeça: corto feito um gramado os cabelos do rosto com barbeador: aparo com uma tesourinha os cabelos das orelhas e das narinas, que são como aranhas saindo das tocas. Envolvo aquele corpo do espelho, com suas regiões de flacidez e rugosidades em excesso, em roupagens socialmente disfarçáveis, feito uma barata kafkiana  metamorfoseada em humano,  para podermos sair pelas ruas sabendo o óbvio ululante: que toda a nudez será castigada com a velhice.
Sentei  diante do computador e, enquanto se processa sua lenta inicialização após ligado, fui revisando os assuntos pendentes espalhados em inúmeros  bilhetes sobre a mesa: escrever texto para o blog Diário de Um Aposentando sobre... postar tal poema no blog Brechó de Poemas, digitar os textos antigos que ainda estão manuscritos, reeditar crônicas aproveitáveis para divulgação online, aprontar o blog de Resenhas  & Resumos & Sinopses, editar a versão impressa do livro de poemas do recém encerrado blog ELOS...Acessar o Facebook  e atualizar o meu mural com uma matéria do Paulo Coelho reduzindo o Ulisses a um tuíte...Cruzes, quantos emails: preciso dedicar mais tempo para ler meu correio eletrônico!...Estudar as Cinco Sabedorias Budistas contidas no mantra “Om ah hum benza guru pema sidhi hum”...Fazer matrícula na UFRGS em Teoria da Literatura...Pronto, ufa!, o Windows finalmente concluiu sua inicialização me dando boas vindas: posso simplesmente abrir um novo arquivo de Word e digitar este texto precisamente sobre este momento deste meu dia de Ulisses, deixando todas as pendências continuarem pendentes e se avolumando com mais esta que possivelmente também não resultará concluída tão cedo.
Como recomendava Hegel, uma pessoa tem que ler um jornal diariamente. Nada melhor para cumprir este ritual intelectual do que agregar a  ele um rito tribal: ler jornal tomando chimarrão. Desci até a entrada do prédio e peguei o jornal na caixa de correspondência, subi e fiz o mate: me parei a matear lendo as notícias. Não existe um jornal bom no país, logo não estou satisfeito com o jornal que leio todos os dias, especialmente depois que ficou vinculado à Rede Record da Igreja Universal (do Bispo Macedo!). O Correio do Povo só tem de bom mesmo  o seu formato enxuto de tablóide  com notícias curtas e dois colunistas, um colunista diário e local, que é o Juremir Machado, e o Elio Gaspari, que é um colunista semanal  de fora do estado. Minha caixa de correspondência do condomínio não comporta uma edição por assinatura da ZH, procuro ler apenas seus cadernos especiais. O jornal O Sul surgiu como uma esperança de fazer um meio termo na aldeia, mas são muitos colunistas inexpressivos e muitas fotos pra pouco texto. No final, de qualquer jornal não fica nada senão a certeza de que a loucura geral continua se agravando, mas na boca fica o amargo prazeroso da erva mate nos  aquecendo culturalmente por dentro. A manhã de um aposentado passa voando!...

Uma Categoria em Extinção

              Para completar o quadro da minha sala de trabalho, registro que somos três engenheiros homens e mais a engenheira Catarina Maria Reina Cánovas, numa sala de 21 m2. Somadas, nossas idades totalizam 235 anos, mais de dois séculos, o que perfaz uma média de 59 anos por cada barnabé! A Catarina é um caso à parte, pois de há muito já completou seu tempo de serviço (há mais de dez anos), mas não quer se aposentar. Quando todos nós, colegas de sala, éramos ainda estudantes de engenharia, ela já exercia o ofício de engenheira elétrica com pioneirismo na empresa.
           Ainda hoje ela é, com sua entrega e dedicação ao serviço, uma referência, um estímulo  e também uma cobrança permanente para que mantenhamos alto desempenho, sem nunca nos deixar cair num ritmo  de trabalho característico de “aposentandos” em final de carreira. Definitivamente a Catarina, uma workaholic, só irá se aposentar pela compulsória, isto é, aos 70 anos de idade, o que só deverá acontecer daqui a quatro anos...quando então a sala será extinta com os seus dinossauros.
A carreira do funcionalismo público municipal é ridícula, consiste em “avanços” de qüinqüênios, que acresce 3%, e nas chamadas mudanças de letras de A até D, processo que se tornou um funil por onde poucos passam de uma letra pra outra, para se obter um acréscimo de mais 5% no básico do salário. Como todos os membros da sala já atingiram o topo da carreira, a letra D, somos tidos como os Dinossauros.

Estamos sentindo realmente a sensação de sermos uma espécie que está sendo caçada tendo em vista a sua extinção deliberada, com forte pressão internacional para privatização do setor público, na era FHC, e atualmente, na era Lula, através da terceirização ou das chamadas participações público-privada (PPPs).
Faz muito tempo que já não se realizam concursos públicos, e dado o envelhecimento do quadro funcional, que já faz fila e se aglomera na passagem pela roleta da porta de saída para aposentadoria, a tendência é que cada área de atividade do funcionalismo público vá entrando em extinção e sendo terceirizada, na medida que vá vagando seus cargos. Tudo gradativamente, sem alardes, uma extinção de uma categoria de forma indolor, como em câmeras de gás, e difundida em comícios da esquerda e da direita como uma cura homeopática das mazelas da nação.


(Remake de texto escrito em dezembro/2009)


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