O RELÓGIO AUTOBIOGRÁFICO & NÓS, OS ENGENHEIROS

RISCOS DE VIDA E OS NOSSOS MORTOS
         Deu no jornal: ...três meses depois que o jovem Vavá morreu eletrocutado na parada de ônibus, o inquérito policial remetido à justiça indiciou por homicídio culposo oito pessoas. O indiciamento envolve três engenheiros e um eletricista de uma empresa terceirizada, contratada para a manutenção da rede pública de iluminação, e dois engenheiros e dois técnicos da prefeitura (SMOV e EPTC). Segundo a perícia do Departamento de Criminalística houve falta de fiscalização do serviço de manutenção, e houve omissão de providências após o recebimento de denúncias dos usuários sobre a ocorrência de choques elétricos na parada de ônibus. Segundo o laudo do delegado, Vavá não teria morrido se não ocorresse negligência
        Em nota oficial o Prefeito afirmou que não afastará os servidores indiciados, e que aguardará até a conclusão do inquérito da Comissão de Sindicância que avalia o caso para as tomadas de providências administrativas cabíveis.
       Os pais de Vavá receberam bem o resultado do inquérito policial e acreditam que a justiça está sendo feita.
       Esta tensão apreensiva decorrente da responsabilidade técnica dos engenheiros (e técnicos de grau médio) diante de acidentes fatais, me remonta para o caso do acidente...
O trecho acima é parte da matéria publicada neste blog em agosto:

          Mas antes de entrar na questão atual dos engenheiros, a propósito da matéria que publiquei aqui, na semana passada, sobre a implantação do Relógio Ponto Eletrônico no DMAE, percebi que ficaram alguma lacunas pertinentes sobre o assunto, as quais vale a pena resgatar, pois vem enriquecer os propósitos deste blog na perspectiva de um ”aposentaNdo” (com N maiúsculo!).
              Até meados da década de 90 todos nós assinávamos ponto autobiográfico na DVM. Nunca vi este tipo de relógio-ponto em algum outro lugar do DMAE, penso que é uma raridade jurássica exclusiva da manutenção e que a  maioria das pessoas não deve nem saber o que é isso. Pois eu explico: O ponto autobiográfico consiste num aparelho externamente semelhante ao relógio-ponto  de cartão tradicional, apenas que, ao invés de utilizar cartões  ponto individualizados, o aparelho é dotado de um rolo de uma fita de papel. Cabe esclarecer que dispomos de relógios-pontos tradicionais em dois modelos, os antigos, que são acionados manualmente por uma alavanca, e os modernos, que são acionados eletricamente quando penetrados pelo cartão-ponto.
           Pois o ponto biográfico é do tipo acionado manualmente, e quando o servidor abaixa a alavanca se abre uma portinhola metálica que permite acessar a um trecho da fita de papel onde o acionamento da alavanca  imprimiu o horário da “batida”,  e onde o servidor escreve a sua  rubrica com caneta e  o seu respectivo número de matrícula. Simples?... Complexo?...  Exótico?... Mas seguro, com certeza, contra “o mal do século passado” no mundo trabalhista, que é a falcatrua de um trabalhador presente bater o cartão-ponto de outro ausente.
        Todavia, o serviço de conferência do ponto nas fitas quilométricas extraídas deste aparelho biográfico era algo completamente insano. Imagine que o pessoal do administrativo (...o Alonço, depois, a Vanilda, e atualmente, o Rubem), para fechar o ponto de um único servidor no dia seguinte, teria que rodar aquelas fitas imensas e localizar as quatro rubricas de entrada e saída normais diárias e mais a entrada e a saída da hora-extra do dito cujo...É só fazer uma conta simples:  como o corpo funcional da DVM sempre foi de cerca de 150 funcionários, nas fitas de um dia tinha cerca de 600 rubricas (4x150) e mais, digamos que com 30 servidores em horas-extras por dia, 60 rubricas de serviços extraordinários (2x30); diariamente totaliza 660 rubricas escritas numa ordem de chegada aleatória na fita de papel dos registros biográficos do ponto.

             A racionalização deste serviço de controle do ponto, muito antes do advento do computador e do Excel, foi desenvolvida em uma gigantesca planilha que denominávamos o Jogo da Velha. Com os nomes dos funcionários na primeira coluna e  os dias do mês correspondendo às colunas seguintes, o Jogo da Velha consistia que o administrativo ia identificando cada rubrica sequencialmente na fita biográfica e marcando um traço na célula correspondente ao “servidor x dia do mês”, de modo que se aparecesse uma retângulo (quatro traços) o cara estava com o ponto cheio. Barbada, né? O problema mesmo era o cômputo das horas extras, isto eu nunca entendi direito e muito menos saberia explicar agora pra vocês.
        O correlato eletrônico do ponto biográfico mecânico é o prometido relógio biométrico, que é acionado mediante as impressões digitais de cada um, que não ficará mais sujeito às possíveis falsificações das rubricas biográficas ou do simples “um bater o ponto do outro”. Durante este período de transição em que estamos vivendo, foi desenvolvido o método voyeur de controles visuais de quem está batendo mais de um ponto, através da instalação de câmeras de televisionamento. Método este que não se mostrou eficiente para este fim, talvez seja útil para fins de segurança...ou de bisbilhotagem da vida dos membros da grande casa do BigBrotherDmae...ou outras questões  próprias dos tempos modernos...

Lembro que quando entrei como escriturário no DMAE, os engenheiros não batiam ponto, estavam liberados desta humilhação proletária. Este paraíso durou  até  o início da década de 90, quando na Era Petista iniciou-se a saga do Universo em Desencanto dos engenheiros que, até então, eram os todo-poderosos do Departamento. É, acreditem ou não, houve uma época em que por todo o território portoalegrense predominava a espécie dos engenheiros, hoje ameaçada de extinção por seus predadores naturais, com a ascensão dos procuradores e advogados na cadeia alimentar dos benefícios municipais. Naquele tempo, todos nós arigós, sub-espécies não técnico-científicos, queríamos ser engenheiros e usufruir das regalias desses semi-deuses. Os engenheiros dispunham de um carro locado com motorista para fazer o leva-e-trás de casa para o Dmae, e vice-versa, tanto na pegada de manhã como ao meio dia e na saída do expediente. Era uma vida  de  senador, eu imaginava, como um método neuro-linguístico de me motivar a terminar o meu curso de engenheiro, enquanto pegava quatro ônibus  por dia e nem tinha carro. É de se imaginar também, pelo que se conhece do bicho homem, que alguns abusavam e estendiam estes benefícios para levar e trazer a mulher do supermercado e do cabelereiro, as filhas do colégio e até convocavam estes carros locados para passearem alguns finais de semana com a família...Afinal, Brasília é o reflexo do Brasil!
Depois os tempos mudaram, a poderosa Associação dos Engenheiros do Dmae (AED) teve que ceder o seu lugar para as demais classes de técnicos científicos, mediante o surgimento da ASTED no Dmae. Por sua vez, também a ASTED se  extinguiu  ao se diluir no grande buraco negro de todos os técnicos científicos da prefeitura, numa tentativa desesperada de unificação na ASTEC, na  luta de todos contra  a ideologia bem sucedida dos Procuradores e Advogados de que “cada cargo deve lutar por si” em busca de suas próprias vantagens.
Sei que quando eu finalmente consegui me formar e assumir o cargo via concurso público, em 1992, já não havia mais nada daquele antigo glamour no cargo de engenheiro do Dmae. Havíamos caído na arena comum dos mortais: cada um correndo no seu próprio carro para bater o “santíssimo ponto” quatro vezes por dia,  no horário e sem atrasos para não ter que beijar a mão da chefia em troca de um mísero abono no cartão...Decaímos até o limite do orgulho profissional da nossa função social, o qual tem nos levado a reagir e sair na luta dos Capacetes Brancos pelo recebimento de uma “Verba de Responsabilidade Técnica” (mas isso já é tema para uma outra matéria no blog, aguarde!).
Enquanto tudo isso acontecia  no Planeta Dmae, em termos de mega evolução tecnológica  na gestão dos horários de efetivo trabalho dos seus servidores,  a maioria dos demais planetas  do Sistema Solar da Prefeitura Portoalegrense permaneceu na romântica e humanística gestão do início da era industrial, que consiste na livre assinatura pura e simples no lendário Livro Ponto...

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