LUPICÍNIO RODRIGUES FOI ASSIM

            O que um aposentado faz com o seu tempo? A bem da verdade, não posso dizer que estou fazendo o Curso de Letras na UFRGS, na realidade estou fazendo vários cursinhos semestrais, só o filé, o que se pode clicar em “curtir” no currículo e postar no meu perfil como conhecimento genérico, sem fins lucrativos. Agora, por exemplo, estou fazendo o curso de Canção Popular Brasileira, ministrado pelo professor Luiz Augusto Fischer. É uma curtição, oportunidade ímpar de se dar mergulhos dirigidos como este que vou praticar aqui.

Então, a tese central do mestre é que a canção popular é a responsável pela formação lírica do povo brasileiro (assim como a telenovela é a nossa formação épica). Todos nós sabemos as letras de várias canções que nos reportam a momentos diferentes de nossas vidas, canções de nossos amores ou de nossas tristezas no mundo. Diz que a canção brasileira é formativa, isto é, forma o país, simboliza e comenta as questões da vida  brasileira. A canção é um gênero estético com características próprias, pertence ao domínio da literatura (além do da música, assim como o teatro), e que pelo menos há 40 anos dá iniciação estética ao brasileiro em geral.
Concordo de cabo a rabo,  pois eu sou o um exemplo vivo de um fissurado curtidor das letras poéticas das canções populares desde sempre, e que teve a sua formação estética mais ouvindo canções do que lendo poemas. Eu e mais quase todos os brasileiros! Mas agora, valendo nota para a disciplina, tenho que fazer um ensaio sobre um dos cancionistas da velha guarda, comentados e ouvidos em aula como fundadores da atual canção popular (Sinhô, Pixinguinha, Noel Rosa, Ary Barroso, Cartola, Lupicínio Rodrigues, Caymmi, Luiz Gonzaga, Antônio Maria, Dolores Duran entre outros), figurões das gerações de ouro da canção, todos anteriores aos movimentos de Bossa Nova,  Jovem Guarda, Tropicalismo, MPB Politizada e Rock Nacional. Então vamos lá:
           Era uma vez, há muito tempo atrás, um menino nascido na Ilhota, bairro habitado basicamente por negros e mulatos descendentes de escravos, região que vivia sendo inundada pelo arroio Dilúvio em Porto Alegre. O nome Ilhota é porque naquela época o arroio fazia muitos meandros (antes de formatarem um traçado reto ao arroio pela Av. Ipiranga), e a localidade era quase uma ilha dentro da cidade. Hoje, o local remanescente da ilhota foi transformado num condomínio de casas populares chamado Lupicínio Rodrigues em homenagem a este menino.
O professor Fischer salienta que os grandes saltos qualitativos que a canção teve no Brasil se deveu às duas gerações de ouro, esta da velha guarda citada e a dos  atuais setentões que continuam mandando no pedaço; e que ambas gerações foram compostas principalmente por cancionistas de nível universitário. Não é o caso do Lupi, mas ninguém imaginaria que esse menino pobre e negro seria apontado como um dos nomes mais significativos da história da música brasileira. 
Então, como toda história encantada que começa com “Era uma vez...”, a vida deste menino também teve a magia de uma previsão de futuro brilhante feita por um  mago consagrado: Em 1932, Lupi está num boteco, fazendo música com os amigos e entram os Azes do Samba que estavam em excursão no sul. Acabam todos confraternizando, e Lupicínio canta algumas de suas canções. É quando um deles, Noel Rosa, decreta: Esse garoto é bom, esse garoto vai longe! E concordaram com ele, imediatamente, as outras duas figuras que seriam importantíssimas para o mulatinho: Mário Reis, sua maior referência vocal (Lupi: eu imitava muito o Mário Reis); e Francisco Alves – que, décadas mais tarde, seria o responsável pelos seus primeiros grandes sucessos.
Lupi compõe  Nervos de Aços e mergulha na boemia. E o pai entra em surto e arruma um emprego mais do que moleza pro rapaz: bedel – algo entre inspetor de alunos e porteiro – da Faculdade de Direito da UFRGS.
Estou contando esta história fabulosa de um negrinho do pastoreio dos amores perdidos, muito de ler no que o site Sul21 publicou em capítulos, como A fenomenologia da Cornitude: Lupicínio Rodrigues, do livro Uma História da Música de Porto Alegre, do compositor e jornalista Arthur de Faria. Mas alguma coisa também de ver e ouvir falar na cultura oral da minha localidade, pois eu vi o Lupi ao vivo e vivo na travessa Pesqueiro, junto ao Quilombo Areal da Baronesa, há poucas quadras da Vila Lupícinio Rodrigues, que é o resíduo da antiga Ilhota, do lado da praça Garibaldi (Rua Venâncio Aires com Getúlio Vargas).
 Esta região de Porto Alegre, a Cidade Baixa e a Ilhota eram conhecidas no início do século XX como O Reduto dos Seresteiros – e é curioso constatar que, 100 anos depois, a mesma zona retomaria a predileção da juventude boêmia da cidade. Eu próprio lembro de ter assistido nos antigamente, desfiles de carnaval na Rua João Alfredo, com as pessoas colocando as cadeiras nas calçadas em frente das casas, e o cordão de isolamento feito literalmente de uma corda estendidas entre os postes.
Animado com o incipiente sucesso da música Se Acaso Você Chegasse, e ainda amargando  descornos, Lupi resolve ir tentar a vida na Capital Federal e pastorear novos amores por lá. No ano de 1939, aos 24 anos de idade, o rapaz se manda num navio. Numa pensão da Lapa fez amizade com a ala mais malandra e receptiva do primeiro time do samba da época. Entre outros, negros como ele, Wilson Baptista e Ataulfo Alves. Mas ainda faltava um empurrão de alguém com mais prestígio. Afinal, a turma tinha talento de sobra, mas não era poderosa como a elite branca do showbizz carioca. Essa sim é que lhe poderia abrir caminhos. Mas um belo dia um amigo turfista o leva para introduzi-lo direto na mesa dos banbans! (Vale lembrar que Noel Rosa já havia falecido em 1937, aos 26 anos, em conseqüência da incompatibilidade entre duas doenças crônicas: tuberculose e boemia). Lupi sentiu o peso da máfia que estava sentada no Café Nice: Ary Barroso, Haroldo Lobo, Nássara e Francisco Alves, todos cantando uns pros outros suas novidades para o próximo carnaval. Conforme Lupi  conta na sua célebre entrevista  pro Pasquim (edição de 23 de outubro de 1973) um deles falou: “Ô gaúcho, canta um negócio teu aí”. O Lupi cantou algumas e o Francisco Alves retrucou: “Isso é teu, moleque? Isso é teu!? Não dá isso pra ninguém. Vou gravar tudo”.
Era a promessa de realização do sonho encantado do menino da Ilhota, bem conforme o bruxo Noel Rosa havia previsto, anos atrás, na sua bola de cristal de gênio da canção. Mas, sem grana, o mulato que estava virando príncipe no reino das fantasias da cidade carioca, percebeu que tinha que voltar a ser sapo no seu brejo onde coaxa como um rei. E  lá se veio Lupicínio de volta a Porto Alegre, pra nunca mais sair do seu reino encantado... …tão feito de conto de fadas que o emprego de bedel seguia lá, esperando por ele!
É com Orlando Silva, “O Cantor das Multidões”, que Lupicínio surge efetivamente como um compositor nacional. O ano é 1945, e a música é o samba Brasa. Nervos de Aço aparece  como prova inequívoca de que havia um novo, diferente e talentoso compositor na praça. Nem tão novo: já tinha 33 anos. Com o sucesso de Nervos de Aço, Francisco Alves finalmente se dá conta que tinha uma mina de ouro abandonada. Passa a gravar Lupi após Lupi. Entre os maiores sucessos nacionais de 1948 estão suas arrepiantes versões para Quem Há de Dizer e Esses Moços.
Então todas as previsões se confirmavam e o compositor de samba-canção (o sambista de bombachas) começava a espalhar o seu feitiço amoroso por reinos distantes, até em outros países. Vingança, gravada em 1951 por Linda Baptista, é sucesso também em sua versão em espanhol, perfeitamente adaptada ao ritmo do tango A desgraceira narrada ali era tanta que não teriam sido poucos os amantes infelizes a cortarem os pulsos ao som da canção.
Nesse momento, a lógica seria Lupi tentar novamente o Rio de Janeiro, seria uma conquista fácil, o rádio estava bombando. Era o que haviam feito absolutamente todos os compositores de renome nacional naquele momento, mineiros ou baianos, como Ataulfo Alves e Ary Barroso e como Caymmi e Assis Valente. Mas, sem morar no Rio e sem sair do seu brejo, pelos 10 anos seguintes, Lupicínio foi um dos compositores de maior sucesso e prestígio em todo o Brasil. Seguiu emplacando o desfile de hits, com Volta  e a pérola da coloquialidade de  Nunca: ...Saudade, diga a essa moça, por favor, como foi sincero o meu amor, quanto eu a adorei tempos atrás. Saudade, não se esqueça também de dizer que é você quem me faz adormecer… pra que eu viva em paz.
Para a maior parte de seus colegas de boemia, era simplesmente ridículo ele levar sua própria voz ao disco. Logo agora, que vinha sendo gravado por cantores espetaculares – e impecavelmente técnicos – como Francisco Alves ou Orlando Silva. Pra quê?! Mas o cantor Lupi se consagra em  apresentações na cidade paulista, na prestigiada boate Oásis: dois meses em cartaz – há quem fale em cinco –, sempre com casa cheia. E isso, num palco acostumado a receber Sílvio Caldas, Francisco Alves, Dorival Caymmi… A partir de então, ficaria finalmente claro que o compositor era, também, cantor.
 É quando Lupicínio compõe uma das músicas pela qual seria para sempre lembrado por muita gente: o Hino do Cinquentenário de seu time – Grêmio Football Porto-Alegrense. Cuja letra começa glosando o mote de uma greve dos transportes ocorrida naquele momento: até a pé nós iremos, para o que der e vier, mas o certo é que nós estaremos com o Grêmio onde o Grêmio estiver. O que era pra ser um tema da hora, só pra comemorar aqueles primeiros 50 anos, acabou desbancando o hino oficial do clube, do qual ninguém mais lembra. Afinal, hino escrito por Lupicínio, naquele momento, era um luxo que uma torcida jamais dispensaria.
Até os anos 50 tudo muito bem, tava tudo muito bom, mas tudo muda quando  entram os Anos 60. As sucessivas modernidades provocadas pela Bossa Nova, Jovem Guarda, MPB politizada e Tropicália,  enterram viva quase toda a geração de Lupi.
 Mas tudo, mais uma vez, recomeça com João Gilberto. Em 1971, depois de longos anos morando no exterior, João vem ao Brasil gravar um programa de TV na Tupi. Aí, entre Jobins e Caymmis, para surpresa geral, ele manda Quem Há de Dizer, do Lupi. Em 1972, Caetano Veloso, fiel apóstolo joãogilbertiano, volta do exílio londrino tocando em seus shows justamente Volta, do Lupi. Pronto: com duas gerações de ícones culturais apontando pra ele, estava armada a cena pro retorno de Lupicínio.
Depois de uma fase de esquecimento na década de 60, sua obra voltou a aparecer no início dos anos 70, quando, descoberta, passou a ser cantada por alguns então novos – e grandes – nomes da MPB, como Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa, Elis Regina e Paulinho da Viola que registra uma magistral versão de Nervos de Aço.
 Neste ponto eu volto a me intrometer na história do meu personagem para contar o dia em que eu vi o Lupicínio cantar ao vivo. Eu também, como Lupi, não toco instrumento nenhum, mas sempre fiz as minhas canções (marchinhas) batucando em caixinhas de fósforos, desde guri (comecei a fumar cedo!). Era 1971 ou 72, eu com 18 anos, e houve um festival de música promovido pela prefeitura e que oferecia conjuntos musicais para quem não tivesse grupo para apresentar suas músicas, inscrevi a canção Tributos aos Campos (de temática hippie no clima contra a guerra no Vietnã) que se classificou para a final. Então, o empresário que realizava o festival levou os classificados para confraternizarem num bar de boêmios na rua Cel Genuíno, ao lado de onde era o Cinema Marabá. Lá pela tantas, fez-se silêncio no ambiente e levantou de uma mesa no canto da sala um mulatinho franzino e cantou macio uma única música e sentou de novo, sob aplausos delirantes de todos, inclusive meus. Eu vi o Lupicínio cantar!
Em 1974 Caetano grava Felicidade, e nesse mesmo ano Elis Regina vê que era a hora de tomar o gaúcho para si e finalmente ganha coragem pra gravar não uma, mas duas canções de seu conterrâneo. Estraçalha em ambas: Cadeira Vazia e a música Maria Rosa que entra no seu LP daquele ano. Pra fechar, o cineasta Bruno Barreto usa a canção Esses Moços como música-tema da sua adaptação cinematográfica do livro A Estrela Sobe.
Mas durou pouco. Dia 21 de agosto de 1974 é internado na Unidade de Tratamento Coronário do Hospital Ernesto Dornelles, em Porto Alegre. Já estava mal quando, dois dias depois, o filho lhe traz a notícia:
– Pai, “Felicidade” tá estourando na parada de sucessos!
Ainda tem forças pra retrucar, irônico:
– Finalmente estão reconhecendo de novo o velhinho…E Lupi morreu poucos dias depois.
Em 1995, o filho de Lupi, Lupicínio Rodrigues Filho, organizou o livro "Foi Assim" (Editora L&PM)  que é o título de uma música, com uma seleção das crônicas publicadas por seu pai no jornal "Última Hora", de Porto Alegre, entre 1962 e 1963. Citado e recitado por Cazuzas e Lobões, o finado boêmio foi também lembrado pela geração 80 do rock nacional. Arnaldo Antunes fez uma versão de rock pra rancheira Judiaria;  o Thedy Corrêa, líder da banda gaúcha Nenhum de Nós, lançou um CD de revisão eletrônica do boêmio com o título Loopcínio; e o vanguardista Arrigo Barnabé apresentou de 2009 até 2012 o show “Caixa de Ódio” (com CD e DVD) cantando e interpretando músicas do Lupicínio, que inclusive vai virar filme.
O pressuposto básico do professor Fischer na disciplina de Canção Popular é de que a canção faz parte do patrimônio da literatura brasileira. Luiz Tatit, músico-compositor e teórico das estruturas musicais, no livro O Cancionista que faz parte da bibliografia do curso, comenta: Em alguns minutos, um samba-canção pode despertar no ouvinte um grau de emoção comparável à narrativa de um filme de duas horas ou mesmo de um romance que exija meses de leitura. (…) Esta é a questão para um cancionista: fazer com que a experiência relatada pareça ter sido realmente vivida. (…) Lupicínio foi dos mais hábeis e audaciosos compositores engajados à mensagem passional. Hábil pela rapidez em construir uma situação locutiva convincente e audacioso por operar na tangente do falso sentimento, aprumando com as melodias os excessos do texto.
Hoje vemos essa geração de cancionistas setentões que estão por aí  cheios de gás como Caetano Veloso, Gilberto Gil,  Chico Buarque, Roberto Carlos, Paulinho da Viola…Morreu também com Lupicíno Rodrigues uma geração que ainda acreditava que, aos 60 anos incompletos  o sujeito era um velhinho... que é o meu caso etário inclusive, apenas que sigo nas pegadas dos nossos ídolos que ainda são os mesmos, mas que depois deles reconheço que já veio (Cazuza, Renato Russo, Nei Lisboa, Zeca Baleiro, Arnaldo Antunes...) muita gente boa e mais bons cancionistas virão...Dizendo isso, concluo este ensaio questionando a tese do Fischer de que a canção popular brasileira, nos tempos pós-modernos em que vivemos, não tem mais a mesma força de formação estética popular de antigamente (tudo bem, dou o braço a torcer que ainda não surgiu nenhum Noel Rosa ou Chico Buarque!); e concordando sempre com o velho Lupi: O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa, quando começa a pensar...

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