PRECONCEITO LINGUÍSTICO, QUEM NÃO TEM?

         Quando iniciou esta polêmica do preconceito linguístico, criando-se um zum-zum-zum na mídia e na faculdade de Letras da UFRGS onde estudo, sem ter visto o tal livro Por Uma Vida Melhor, patrocinado pelo MEC e destinado ao Ensino de Jovens e Adultos (EJA), pensei se tratar de mais um dos exageros esquerdistas do catecismo do PT.
        Algo como a bobagem de dizer que a noção de certo e errado é a instituição de um preconceito utilizado como instrumento sociolinguístico de segregar as pessoas “ignorantes” do povo das elites “cultas” da classe dominante. Que seria uma pregação panfletária dizendo que também é correto se dizer “os livro” ou “nós pega os peixe”, apenas que com o sério agravante de não ser mais no megafone ou no palanque de uma esquina democrática, e sim nos livros oficiais distribuídos pelo MEC em todo o território nacional. É a voz do poder insultando a própria elite dominante!...

          Entendi que a coisa era pra valer no ensino da língua depois de ver um encarte do jornal ZH de dicas do Cursinho Unificado Pré-Vestibular destinada à prova do ENEM de “Redação e de Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias” que, traduzindo do catecismo petista, significa simplesmente “Prova de Português”. O encarte sobre Variação Linguística reproduzia  a seguinte dica: Aquele que engole os esses, que não conjuga o verbo na segunda pessoa e que flexiona o verbo haver no plural está falando português também, embora em uma variedade distinta da norma culta. Então, o Enem quer que os estudantes saibam que a língua varia e que a norma culta é apenas uma das muitas variedades existentes. Acima de tudo, é importante respeitar as diferentes variedades como língua portuguesa.
        Até então, esta conversa de preconceito para mim era bobagem, pois na prática achamos interessante a fala pitoresca da forma popular não culta, será?...Claro que as falas tradicionalistas do interior, os gauchismos, as alemoadas, as italianadas, as arábicas, etc., tem seus encantos ao atravessarem as concordâncias, mas “nós pega os peixe”  do Zé da vila dói, né?...Preconceito, eu? Será?...

           O crachá de preconceituoso entrou na minha cabeça e ficou enroscado no meu pescoço a me sufocar quando, numa conversa familiar em torno da mesa, me peguei corrigindo uma frase dita pela minha mãe, que tem 87 anos e que, sem nunca ter entrado numa escola, lê o jornal todos os dias e escreve com uma letra mais bonita que a minha. Percebi, então, como o preconceito funciona dissimulado, atua como se fosse uma atitude de compaixão, de ajudar ao próximo a corrigir os seus “erros”. Que necessidade teria, a esta altura da vida, a minha mãe de se comunicar na forma culta se o que interessa mesmo é o imenso conteúdo que tem para nos comunicar e o faz com maestria? É como dizia o grande comunicador de massas Chacrinha: Quem não se comunica se trumbica!
         Fiquei com esta pulga do preconceito linguístico coçando atrás da orelha e fui pedir ajuda aos mestres universitários.  O Juremir Machado, mestre de jornalismo, puxou a orelha dos seus alunos opinativos: Na polêmica do que é correto ou não em português, vimos especialistas dando carteiraços a torto e a direito e jornalistas revelando uma ignorância primária, no melhor estilo "certo é certo, errado é errado". Sempre foi assim, assim será ou corremos o risco de ver a língua perecer. Alguns jornalistas revelam o conservadorismo que os caracteriza em qualquer situação. Qual a minha posição afinal? Não estou com os defensores do livro do MEC nem com os seus críticos. Sei que as línguas mudam todo tempo e que servem de sistema de hierarquia social. Não acredito, porém, que todas as variações sejam equivalentes ou que um modelo seja imposto meramente por distinguir os seus usuários. Acredito numa construção coletiva e histórica, uma competição permanente entre fórmulas e modos de expressão. O padrão culto resulta, para mim, de uma espécie de seleção entre formas distintas, sendo aquele que garante o maior grau de expressividade e clareza, até que uma regra é superada por outra ainda mais expressiva, alterando esse padrão. Em alguns casos, uma regra está ultrapassada, mas permanece realmente como mecanismo de distinção social.
        A princípio fiquei alinhado com esta posição, nem contra nem a favor (muito antes, pelo contrário!), e até transcrevi este texto do Juremir no meu facebook. Mas fiquei esperando pelos mestres especialistas que comandam a área de linguística na opinião pública riograndense, os professores Cláudio Moreno e Luís Augusto Fischer.
      O professor Moreno publicou uma sinalização do seu posicionamento sobre a questão: ...essa concessão que o livro do MEC faz às variantes populares, esse tratamento simpático e acolhedor dispensado, por exemplo, ao ”nós pega peixe”, vai contra tudo o que os alunos do EJA esperam da escola que frequentam com tanto sacrifício (e esses eu conheço muito bem; lecionei, por anos a fio, nas turmas da noite do Supletivo). A Linguística, ciência moderna, estuda a língua como um organismo multifacetado, em constante mutação, impossível de ser aprisionado em preceitos que regulem o seu emprego; o usuário comum, por sua vez, quer estudar a língua como um sistema padronizado de regras aceitas pelo consenso das pessoas cultas. O grande contingente que reagiu contra a publicação do MEC não estava, a meu ver, repudiando o saber dos cientistas da linguagem, mas sim enviando um claríssimo recado que os linguistas insistem em não ouvir: não é isso o que esperamos da escola... E continua: Para o lingüista, como para o biólogo, não há certo, nem errado – há o natural, o orgânico, o espontâneo. A escola, ao contrário, é obrigada a proceder uma seleção dos valores de memória cultural que os alunos deverão compartilhar; cabe a ela, em nome da sociedade que representa, determinar o que é pertinente (e o que não é) em História, Matemática, em Literatura e em Língua Portuguesa, onde se faz sentir esse incontornável caráter político da instituição. Mesmo sabendo, graças ao trabalho dos linguistas, que há uma grande variedade de dialetos no Brasil, na escola é necessário difundir uma língua culta que sirva de fator de coesão do tecido social e cultural do país. O que fazem alguns lingüistas de esquerda é tomar a causa pelo efeito: a língua culta não é adotada na escola por ser a variedade adotada pelas elites, mas, ao contrário, ela foi adotada pelas elites por ser um instrumento admirável que vem sendo aperfeiçoada ao longo dos séculos. É uma escolha essencialmente cultural e o ensino da “língua culta” é uma tarefa de Hércules entregue aos professores, sem pretenderem anular as demais variedades, para que os alunos não tenham que carregar o pesado fardo da exclusão social a que ficariam condenados em nome do duvidosos “princípios científicos” contidos no livro do MEC.
         O professor Fischer também entrou no jogo fazendo este meio de campo entre o científico saber linguístico e o seu conflito com a perspectiva de aprendizagem do aluno: Bilac e Rui equivalem a uma aula de língua materna que seja a exposição (e a consequente imposição) de um padrão pedante e incompreensível, assim como equivalem a uma aula de língua materna que privilegie (quando não exclusivize) ortografia e vocabulário requintados. Sim, calma aí: todo o aluno deve ter acesso ao melhor da língua, Machado de Assis, Fernando Pessoa e Shakespeare traduzido, e todo professor tem que se esforçar para ser erudito em seu metiê; mas não é com eles que se começa a conversa, nem é ditando um padrão único que se ensina a entender os mecanismos da língua. Papo para muitas outras mangas ainda, é claro...
Ou seja, os mestres universitários estão pisando em ovos para tratar do assunto, tanto que o notório conservador Percival Puggina aproveitou a bola picando deixada pelo Fischer para lhe dar um bico nas canelas no twiter: O escritor Luis Augusto Fischer, defendendo as teorias do MEC, dá uma aula de sofismas em ZH de sábado.
           Esta polêmica do ensino do português é uma boa oportunidade para “mim adentrar” neste universo no qual sou calouro, o estudo acadêmico de Letras. Doeu no ouvido o para “mim adentrar”? “Mim não fazer nada”, diz o maçete dos cursinhos pré-vestibulares, quem faz sou “eu”! Pois consta que o Celso Pedro Luft, gramático, lingüista e professor de todos os mestres universitários atuais, conforme conta o professor Fischer, assim começou sua intervenção numa conferência para falar sobre seu livro Linguagem e Liberdade (1985): Pediram para mim falar com vocês sobre língua e liberdade”. Diz a frase e faz a pausa dramática que vem  do desconcerto da platéia, todos professores que se policiam muito para não dizer “para eu falar”.  E o grande Celso Luft começa a discorrer sobre a variante popular do Português. Que a escola não devia discriminar  os alunos que usassem variantes não-letradas; a escola deveria acolher essa realidade linguística, para depois ensinar a variante culta, à qual todos deveriam ter acesso. A ênfase de sua defesa do “errado”, entre  muitas aspas, foi combatida e instalou-se a polêmica.
       O professor Paulo Guedes de redação da UFRGS, também no Caderno de Cultura da ZH que homenageava Celso Luft, falando sobre o livro Linguagem e Liberdade que trata do preconceito tradicional sobre gramática como sendo um sistema fixo e morto, cita outro livro, Preconceito Linguístico (1999) de Marcos Bagno, que mudou o rumo da discussão nacional a respeito da língua e do seu ensino. O debate sobre linguagem tem que ver com liberdade por ser também um problema político, considera Guedes: pois Luft não foi daqueles que se dedicaram a informar o povo brasileiro que Lula, por não falar português direito, não poderia ser presidente da República.

       Foi assim, trilhando pelas pegadas dos mestres universitários, sem acatar acriticamente seus “carteiraços de especialistas”, mas precisando desesperadamente afrouxar o sufoco do “crachá de preconceituoso lingüístico” que continuava enroscado no meu pescoço, que acabei comprando o tal livro divisor de águas do Marcos Bagno: Preconceito Lingüístico – O que é, como se faz.
         O cara tripudiou, escancarou o meu preconceito enrustido em túnica de bom samaritano; me deu nos dedos, feito uma palmatória! Doeu, mas o convencimento da minha “culpa” foi feito com bons e contundentes argumentos: Todo falante nativo de uma língua é um usuário competente da língua. Entre os 5 e 6 anos uma criança já domina integralmente a gramática da língua. Portanto, não existe erro de português, existem alternativas de uso em relação à regra normativa. Não confundir com erro de ortografia, que é uma imposição política decretada por algumas poucas cabeças reunidas pelos palácios do poder. A  ortografia é artificial, ao contrário da língua, que é natural. Toda língua muda e  varia, o que hoje é visto como “certo” já foi “erro” no passado. A língua portuguesa segue seu rumo e não pode ser detida em suas transformações. É preciso respeitar a variedade linguística das pessoas, pois a língua está em tudo e tudo está na língua. Nós somos a língua que falamos, e bem ensinar o português é respeitar o conhecimento intuitivo do aluno.
        Depois de escutar tantos mestres sobre Preconceito Linguístico – O que é, como se faz, tive que aceitar o crachá. Como diz o ditado popular, quando um Celso (Luft) fala o outro Celso (eu) baixa as orelhas:
- Preconceito linguístico, eu? Tenho sim, você não?...

Um comentário:

  1. Excelentes reflexões, Celso. Bagno não é um linguista da gema, mas fez uma boa pesquisa nesse livro: a explicação sobre os processos internos da língua portuguesa são muito úteis para proteger o ouvido quando se escuta a moça (aos berros) ao celular - Craudia, a Vivo não broqueia! :) Como futuros linguistas, nosso ouvido treinado só quer saber pq esse processo acontece, certo? Pois é, o problema é atribuir valor aos erros... Plural redundante é um fenômeno em todas falas do Brasil, TODAS. Mas cl > cr é só dos pobres de dinheiro. Então meu ouvido só doi qdo ouço um "Craudia", não qdo ouço a madame 'vou cortar meus cabelo'...

    Fico com meu ídolo Evanildo Bechara 'o estudante precisa ser poliglota em sua própria língua', acho que é este o papel da escola: ensinar a poderosa língua culta, aquela roupa de gala que a gente usa qdo a ocasião assim exige. Mas o professor JAMAIS deve desmerecer a língua do aluno ou apontar erros. Considerando, por ex., o jeito que os estagiários chegavam para a entrevista lá no DMAE (léxico de 2 palavras: 'tia' e 'bagulho'), a escola tem sido totalmente incompetente no ensino do 'português estrangeiro' chamado de norma culta...
    (BTW, Maurízzio Gnerre tem um livro interessante sobre o tema, Linguagem, escrita e poder. E Celso Luft tem um bem leve chamado Língua e Liberdade: por uma nova concepção da língua materna)

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