A FASE PÓS FEBEM E OS FILHOS DA FLORESTA

No Morro Santa Teresa, em Porto Alegre, é onde ficam situados vários prédios de grande porte da FASE (antiga FEBEM), na base do morro junto à avenida Padre Cacique. Este assunto me diz respeito por várias razões, mas especialmente por envolvimento afetivo e sentimental. A área em litígio político é o terreno onde brinquei a minha infância, dos oito aos dezesseis anos de idade. Lá dispúnhamos de todos os tipos geográficos de recantos: mata cerrada, rio nativo na selva, onde brincávamos de Tarzan saltando de cipó por sobre as águas (tão fundas que uma vez morreu um garoto afogado: ficou trancado nos galhos caídos no fundo do riacho represado), morros verdes com capins e flores silvestres, penhascos escavados em saibreira (onde já praticávamos o moderno ski-bunda morro abaixo), um campo de futebol tamanho oficial e, sobretudo, uma vista ampla do perfil do centro da cidade e do pôr do sol no Guaíba. 
Neste cenário cinematográfico brincávamos, como era costume das crianças daquela época, de bolinha de gude, de pião (de um rachar o pião do outro), de pandorga (de colocar gilete no rabo para fazer a pandorga do outro ir à Bahia), de jogo de taco, de fazer partidas de “balãozinho” com bolas de meia (preenchidas com panos), de jogar bilboquê (no qual até hoje sou habilidoso), em correr dirigindo aros de ferro com uma guia de arame torcido, de correr dirigindo pneus de automóveis (sem roda e sem câmera) com uma guia feito de um toco de madeira; e também de brincar de mocinho e bandido ou de índios, fazendo bandos contra bandos ou tribos contra tribos, com fundas (bodoques) ou lanças feitas de galhos de árvore. Era uma espécie de pré paintball, onde várias vezes fui ferido nestes combates de “brincadeirinha às ganha!” no internato.
Este assunto também me diz respeito por várias questões, pois eu participei (como cobaia) do projeto pioneiro experimental de implantação de casas-lares em substituição aos grandes internatos públicos, onde a individualidade das crianças ficava diluída na tribalização  institucional. Vivi no internato da FEBEM, como carente, desde os sete anos até os meus dezesseis anos de idade. Ao ser  aprovado no famigerado exame de “admissão ao ginásio”  no SENAI, fui transferido em 1969 para um projeto pioneiro de casa-lar desenvolvido pela própria FEBEM, tipo semi-internato de um grupo reduzido de menores coordenados por um casal contratado, alojados  numa casa na avenida Alberto Bins, no centro da cidade.
 Uma reportagem publicada em 2012 sob o sugestivo título “Meninos Condenados”, relata que de 162 meninos que estavam  internos em 2002 na FASE, 135 foram presos, destes 114 foram condenados e 48 morreram. A matéria conclui que “Fase segue sem recuperar”, mostrando que 91% dos ex-internos  que deixaram a casa nos últimos dois anos se tornaram  suspeitos de crimes. Poderia ser melhor, mas muitos saíram das matas da FEBEM,  na Padre Cacique, e  procuraram continuar sempre ampliando seus horizontes e conquistando novos domínios culturais...
Por isso,  penso que é preciso dar especial  realce, não aos 91% da FASE pós-FEBEM que reincidiram na violência, mas sim aos 9% que se salvaram, graças ao trabalho da instituição, tiveram uma oportunidade de sobrepujar as dificuldades e fazer prevalecer seus valores  pessoais, como eu próprio (modéstia à parte!). Os tempos são outros, não sei avaliar se a FASE piorou em relação à FEBEM do meu tempo, ou foi o perfil dos internos que migrou da carência para o da deliquência pelo agravamento da exclusão social nos grandes centros urbarnos.  Pode haver poucos adolescentes  de classe média na FASE, mas certamente há muitos cidadãos na classe média que são oriundos da FEBEM, e com muito orgulho!
Apesar dos pesares, sobretudo no âmbito das carências afetivas, fiquei com uma boa recordação da infância pobre (mas sem miserabilidade) que tive na tribo dos Filhos da Floresta do Morro Santa Teresa, tanto que desde aquela época escrevo poemas, pra não perder a ternura da poesia da vida jamais...

O ELO DO ÉDEN PERDIDO
E pensar que eu próprio
Que hoje vivo desta forma aburguesada
Quando guri, nadava solto no rio
Andava descalço nos matos
E nos morros cobertos de geada
Vivia como índio, em orfanatos
Bebendo, no chão, água de vertente
Sonhando em crescer para virar gente...
E pensar que eu era um filhote de animal humano
Naturalmente feliz no existir cotidiano, sem pensar.

2 comentários:

  1. Celso, me emocionei muito ao ler tua postagem. Trabalho com jovens de baixa renda, bolsistas de uma escola particular incrustrada em uma das áreas mais conflagradas da cidade. Ler-te me provoca o mesmo questionamento: quantos ainda não migraram da carência para a delinquência? Ou quantos podem desta última escapar, alcançando alguma dignidade na vida? Abraço :)

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  2. Que texto bonito, cheio de história, fotografia, paisagem, memória que poderia muito bem ter sido ilustrado com desenhos em lápis grafite quase sem ponta,sem sombra,sem firmeza no traço, mas do contrário foi colorido com capricho, com lápis faber castel de 36 cores, composto de uma linguagem expressiva e uma estética requintada. Belas imagens! Iluminadas de gratidão.

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