UM FURACÃO EM NOSSAS VIDAS

         Voltar a escrever manuscrito, como estou fazendo agora, nesta chuvosa manhã de domingo, poderia ser uma atividade nostálgica, mas é por uma necessidade ocupacional terapêutica emergencial, para eu não enlouquecer de calor e tédio nesta cidade que é um forno nada alegre. Eu explico tim-tim por tim-tim, até porque sequer sei se a intensa tempestade que devastou Porto Alegre virou notícia nacional e se viralizou na internet. Procurarei fazer uma narração sequencial para registrar o que estamos vivendo, pois estamos nos sentindo personagens daqueles filmes de caos apocalípticos de Hollywood, em que os alienígenas adoram destruir New York. No caso, as forças poderosas erraram o alvo e atingiram a nossa pacata cidadezinha no final inferior do mundo.


Há dois dias atrás, numa noite de sexta-feira extremamente quente, com a temperatura em torno dos 40ºC, tudo corria bem com apenas algumas formações de nuvens que se faziam e se desfaziam ao longo dos últimos dias, mas que nunca choviam. Estávamos no Teatro da Santa Casa, assistindo como de costume uma peça teatral do Festival Porto Verão Alegre, nesse dia era a já clássica “Se o meu ponto G falasse”, que está em cartaz faz 19 anos, quando as atrizes começaram a ter comportamentos estranhos, a esquecer o texto e uma dando deixas pra outra das falas seguintes, enquanto ao fundo crescia um ruído chiado que atribuímos a uma trilha sonora esdrúxula, própria desse pessoal esquisito de teatro.
Mas, para surpresa geral, ao final da peça, que notadamente foi meio apressado, enquanto elas eram aplaudidas pelo público de pé, elas declararam nervosamente que lá fora estava ocorrendo um imenso temporal, e que o tempo todo elas estavam receosas que faltasse luz durante o espetáculo. Dito e feito, ao final desta fala da atriz, parecendo coisa ensaiada, imediatamente faltou luz no auditório. Daí pra diante começou um novo episódio, pois só compreendemos que a coisa era pra valer ao percebemos a escuridão do saguão externo e finalmente ao visualizarmos na portaria do teatro a chuva torrencial com raios e trovões e fortíssimos ventos (dizem que acima de 100km/h) que, por liberdade literária, chamarei de furacão, ciclone ou tornado. Ficamos ali, ilhados assistindo a formidável imagem da anunciação bíblica ao Noé do final do mundo pelo Dilúvio. Como nossa arca estava estacionada distante da portaria do teatro, eu e meu filho saímos da caverna para enfrentarmos as forças medonhas da natureza e trazermos a arca para resgatarmos nossas mulheres. Depois seguimos viagem rumo à terra prometida, nossa casa, onde uma lasanha feita pela minha nora nos aguardava para o jantar.
O segundo ato deste episódio percebemos se iniciar logo na primeira esquina, se delineava o roteiro de uma epopeia urbana no caos do Apocalipse Now. Andávamos por uma cidade totalmente às escuras, as ruas estavam inundadas de água em correntezas ou empossadas e, o mais dramático, havia árvores e galhos caídos por todas as ruas e avenidas, andávamos como em trilhas contornando os obstáculos na via. Não sei se por pânico cinematográfico, daqueles em que toda a população pega os seus carros e tenta fugir da cidade ameaçada pelos alienígenas, o trânsito estava completamente engarrafado. Nada funcionava, sem sinaleiras e semáforos e sem os fiscais azuizinhos. Era cada um por si e contra todos nos cruzamentos e desvios das árvores caídas. Registre-se que tudo isto estava acontecendo às onze horas da noite, numa sexta-feira em véspera do feriadão de Navegantes, em que o normal era as ruas estarem abandonadamente vazias. Mas estávamos todos lá que nem baratas tontas, transtornados pelo tornado.
O terceiro ato deste episódio foi quando, uma hora depois, conseguimos chegar em frente de casa. Mas como abrir o portão motorizado da garagem sem energia elétrica e com fios caídos bem em frente? O jeito foi abandonarmos o carro num ponto mais alto da rua para não ser inundado pelas águas que se avolumavam nas sarjetas. Novos desafios se introduziam a cada nova etapa do roteiro: como entrar no edifício se havia uma árvores caída com os seus galhos tapando a porta do prédio? Com algum esforço, quebrando algumas pontas de galhos e se esgueirando contra o marco da porta conseguimos entrar, não sem alguns arranhões. Ufa, enfim em casa? Não, ainda não. Sem luz significa sem elevador, foi preciso subir vários lances de escadas acionando a lanterna do celular até entrarmos no apartamento e acender uma vela.
Finalmente em casa, o quarto ato deste episódio foi conferir os estragos que não foram poucos por causa da janela que tinha ficado aberta. O pior é que molhou o passaporte e os euros do meu filho que estava por viajar na noite seguinte. Mas, secado tudo e jantados, restou um banho frio e tentar dormir à luz de vela  sem ar condicionado, sem ventilador, sem TV nem rádio pra saber se havia mais sobreviventes ou se o mundo tinha acabado...dormir só mesmo com uma boleta sonífera faixa preta de Bromazepan.
O quinto ato deste episódio foi no After Day, ainda sem notícias do mundo exterior (nem o jornal Correio do Povo chegou na caixa de correio) e, para piorar, com o celular completamente desacordado por falta de bateria. Neste dia seguinte foi difícil encontrar algum restaurante que estivesse funcionando para fornecer almoços, conseguimos a Churrascaria Garcias que estava atendendo no escuro mesmo (sem gerador nenhum) e com cervejas mornas. Depois do almoço, nem pensar em soneca ou namorar na tarde de sábado sem ar refrigerado nem ventilador. A solução encontrada, a mesma da maioria dos moradores da área atingida (Centro Histórico, Cidade Baixa, e Menino Deus e proximidades), foi buscar um shopping com ar condicionado para passarmos a tarde e até o anoitecer, sempre com a esperança que o mundo voltasse ao normal, movido que é à eletricidade.
Como sexto ato deste episódio escolhemos no Bourbon Zaffari  um filme qualquer da sessão da tarde para ficarmos duas horas confortavelmente sentados no ar condicionado. O tempo passou rápido demais, nem lembro qual o nome do filme e talvez eu tenha dormido um pouco.
O sétimo ato deste episódio foi o desespero de continuarmos sem informações do mundo exterior, pois sem carga nos celulares não podíamos acessar e saber quais foram os estragos e quais as perspectivas de normalização para dar fim a este caos em que as ruas continuavam sem sinaleira e tomadas dos obstáculos mais variados, não só árvores mas também containers de lixo virados na via por tudo que é lado do perímetro devastado pelo ciclone tropical. Angustiados, procuramos tomadas elétricas pelos saguões  do Shopping Bourbon para carregar os celulares, mas as poucas que havia estavam todas cercadas por várias pessoas carregando os seus aparelhos ao mesmo tempo ou esperando a sua vez.  O jeito foi comprarmos no supermercado um “tê” e nos associarmos numa tomada elétrica com uma moça que gentilmente havia nos sugerido a ideia. Conversa vai, conversa vem, e a guria nos contou que estava ansiosa pois não conseguia conexão com a internet para saber se aconteceria mesmo a excursão que ela iria na manhã seguinte para fazer trilhas nos cânions de Itaibezinho. Num clima desses que até tornado acontece, dizia ela, estava apavorada de medo de fazer o tal passeio... Obtivemos um terço da carga na bateria e saímos adotando a política de racionamento do seu uso apenas para os casos emergenciais, sobretudo porque naquela noite tínhamos que fazer o “bota-fora” no aeroporto do nosso filho que ia embarcar com sua namorada para Portugal e precisávamos manter a conexão com eles. De noite, no caminho para o aeroporto, passamos pelo parque da Redenção, onde me pareceu que um dinossauro gigantesco passou pisoteando as matas, derrubando e quebrando as árvores como se fossem capins.
O oitavo ato deste episódio sobre o furacão na minha cidade, foi quando retornei tarde da noite pra casa e constatei que o caos permanecia igual 24 horas depois do ocorrido e piorando as nossas condições básicas de sobrevivência. A geladeira desgelou totalmente, nem água gelada restou. Novamente, sem elevador subi as escadas com luz do celular, dormi sem ventilação e à base de comprimido faixa preta. Na manhã do segundo dia após o apocalipse, que é hoje, aconteceu a profecia trágica que estava na boca de todo mundo que encontrávamos, faltou a água também! Tratei logo de colocar baldes para coletar água da chuva que caía do meu telhado para, pelo menos, garantir o bom uso do vaso sanitário; ninguém merece! Trinta e seis horas depois da passagem do ciclone, recebi através do meu telefone fixo da OI! (um aparelho antiquado que mantenho justamente por funcionar sem energia elétrica numa calamidade como esta) recebi a triste notícia de que a tempestade havia afundado o barco turístico Cisne Branco, emblemático veículo de passeios pelas água do nosso rio Guaíba.
O nono ato deste episódio foi a dramática sensação de termos chegado ao fundo do poço, de estarmos feito mineiros soterrados em uma mina desabada em que as suas esperanças de chegada de socorros estão se acabando como o ar nos pulmões. Nunca antes houvera uma falta de abastecimento de energia elétrica durante tanto tempo. O que será que de tão “inconsertável” teria ocorrido? No boca-a-boca se ouvia dizer que eram tantas árvores dependuradas em fios e tantos cabos elétricos caídos, que somente depois que as motosserras cortassem e amontoassem os troncos e galhos e que os fios caídos fossem cortados ou emendados é que poderiam restabelecer o abastecimento normal de energia. De fato, as motosserras dos funcionários públicos e dos próprios moradores eram ouvidas em todas as ruas e passaram a fazer amontoados de galhos nas calçadas para um futuro recolhimento, mas a previsão extra-oficial é de que só na segunda feira, amanhã, é que a rotina da gente voltaria ao normal.
No décimo e último ato deste episódio, pelo telefone fixo, minha filha avisou que no bairro Azenha ela já tinha luz e água, e me ofereceu um banho em sua casa. Considerei bom sinal, significa que os socorristas da CEEE estão chegando perto dos soterrados no fundo do poço da Cidade Baixa, e que em breve farão o nosso resgate, espero que ainda nesta chuvosa tarde de domingo. Com tudo ainda na mesma, fomos almoçar novamente no ar condicionado do Bourbon Ipiranga, levando os fios para recarregarmos os celulares em suas poucas e disputadíssimas tomadas elétricas e, se preciso, nos jogarmos outra vez para dentro de um de seus cinemas para nos refrigerarmos comodamente. Mas não foi preciso tanto, nos entretemos com o colega de tomada que estava com sua família de turistas vindos do Pará, os quais estavam hospedados há três dias num hotel sem luz e sem elevador, e que fornecia velas para os hóspedes subirem as escadas, pode?! A conversa foi animada, pois o cara também era Eng. De Minas, filósofo, ex-petista e ariano como eu; duas horas depois nos despedimos com nossos celulares devidamente carregados.
Em casa de tardezinha, escrevendo este texto de forma manuscrita, com uma caneta Bic, como terapia para engambelar o tempo tedioso por não dispor do computador, finalmente fez-se a luz e com ela brotou a água, pouco antes de completar as 48 horas de falta de energia elétrica no meu bairro. De banho tomado pude respirar aliviado para refletir sobre a peça de teatro que assistimos sobre o ponto G das mulheres durante o furacão e para, finalmente, poder bisbilhotar na internet o modo como foi noticiado e comentado este vendaval que tanto assombrou os portoalegrenses. 

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