CAMINHANDO CONTRA O VENTO COM NIETZSCHE

 
Às vezes, quando ouço os lero-leros das propagandas do horário político obrigatório, onde velhos e novos picaretas fazem apologias românticas e ilusionistas da democracia, me lembro dos meus estudos do filósofo Nietzsche, o destruidor de ídolos.
Nietzsche devotou um sagrado pavor ao homem-massa, ódio ao que na época se chamava de filisteu. Durante séculos esses tipos insignificantes existiam, sendo sempre desprezados ou merecendo a indiferença dos grandes cabeções da humanidade.

O que arrepiava Nietzsche é que o populacho filisteu havia adquirido o direito à visibilidade, inflando a sociedade com sua imensa banalidade e inseparável mau gosto. O filisteu é que está por detrás da nova religião da igualdade que é a democracia, sendo o principal mentor da mediocridade artística do nosso tempo. O sangue lhe subia à cabeça, ficava furioso ao manifestar o seu particular horror aos democratas e aos socialistas. Via-os como os cristãos dos novos tempos, iludindo o povo com promessas de igualdade e fraternidade.
Nietzsche foi talvez uma dos últimos “cabeções” a se opor à maré democrática, à força irreprimível do nosso tempo. É a esse homem-massa, ao filisteu e aos seus "gostos" e "valores" que Nietzsche empenhou-se em soterrar e aniquilar. Ele abominava gente de esquerda: "não falo jamais para às massas".

Todavia, a revolução estudantil francesa de maio de 1968 que queria colocar “a imaginação no poder”, que se rebelou contra a chatice e pregava que “é proibido proibir” com o slogan “seja realista, exija o impossível”, foi um movimento referenciado filosoficamente em Nietzsche, conforme contam os historiadores. O fato de tal movimento estudantil ser considerado nietzschiano se constitui num paradoxo, pelo fato de se referenciar justamente num filósofo tido como extremamente elitista. Resta saber, então, no que se baseia o elitismo do filósofo.

Nietzsche, nos livros Introdução à Tragédia de Sófocles e O Nascimento da Tragédia, resgata a importância dos princípios dionisíacos do mal comportamento moral, como sendo uma natural contraposição aos princípios apolíneos bem comportados. É óbvio que o movimento estudantil de 1968 está associado ao erotismo dionisíaco, ou seja, do deus grego Dionísio, que é dos ímpetos avassaladores e destruidores, das festas, do vinho, do lazer e do prazer; como também é óbvio que a dialética do movimento politizado de esquerda está associada ao comportamento apolíneo, ou seja,  do deus grego Apolo, que representa a harmonia, a moderação, a ordem e a razão.

Para Nietzsche, sem a existência dos princípios dionisíacos, se cria uma cultura de rebanho. Com a moderna cultura de massas desenvolvida pela indústria cultural de consumo, que é regida pelas leis do mercado, se engendrou uma cultura de rebanho nivelada pela mediocridade, democraticamente promovendo um rebaixamento da arte como um produto adequado para satisfazer ao perfil da grande massa de consumidores sem perturbá-los com criações inquietantes ou catárticas e arrebatadoras.  É contra este aviltamento da arte que Nietzsche trava a sua batalha tida como elitista, de preservar e enaltecer os valores nobres da arte, enquanto uma experiência intensa de afirmação positiva da vida.
A elaborada teoria nietzschiana da genealogia da moral, resumindo, diz que o cristianismo derrubou as virtudes pagãs da cultura grega e instituiu uma moral de escravos. É nesta perspectiva que os movimentos de jovens, tanto o estudantil quanto o hippie, se rebelaram contra a moral repressora na década de 60, e por isso são tidos como nietzschianos.
Mas a história oficial, como sempre, é contada pelo apolíneos (os politizados), e todas as conquistas de transformações sociais, culturais e de costumes conquistadas neste período são atribuídas, a meu ver equivocadamente, aos estudantes rebeldes. O saldo histórico que ficou não foi político, está aí o FHC e o próprio Lula (ícones da esquerda dos anos 70) para comprovar que nada mudou na política; a grande mudança foi cultural (artes e costumes), que é o campo em que os hippies tencionaram com uma vivência alternativa prática (dionisíaca) e não meramente teórica e discursiva.










Após a avalanche de revisitação da mídia ao “maio eterno de 1968”, em decorrência da passagem dos 40 anos do movimento, parei para refletir e passei a compreender melhor a minha própria vida:
Na década de 60, eu estava no lado dionisíaco da história, com uma pequena mochila nas costas, peguei a estrada pedindo caronas e fazendo artesanatos para sobreviver, vivenciei comunidades hippies e festivais de música, drogas e rock and roll até no Uruguai, paraíso das drogas livres na época; enquanto a juventude apolínea fazia as barricadas nas ruas de Paris.
 Na década de 70, alienadamente curtia o tropicalismo com “Alegria,Alegria”, dionisiacamente caminhando contra o vento sem lenço e sem documento; enquanto apolineamente a juventude engajada se lançava na luta armada da guerrilha urbana contra a ditadura militar.
A partir dos anos 80 eu migrei para o lado apolíneo da história, me tornei um militante engajado na construção do sindicalismo e num  partido dos trabalhadores, enquanto o lado dionisíaco virava punk-anarquista...
Na virada do século e do milênio, porém, voltei a procurar a minha essência dionisíaca, e o máximo que consegui foi tornar-me um anarquista: voto nulo! Recorri, então, como num desespero de causa, ao estudo da apolínea filosofia clássica, tribo em que sempre me senti como um estranho no ninho do meio acadêmico apolíneo. Passei a correr, como Proust “Em busca do tempo perdido”, atrás das minhas vinculações dionisíacas com a arte, especialmente com a literatura e a poesia, que se mantiveram minhas fiéis escudeiras contra “a cultura de rebanho” de apenas sobreviver, que é feito um caracol que se enterra em seu próprio casco”, como esbravejava Nietzsche.
 Segundo Oscar Wilde: O futuro é aquilo que os artistas são, e a arte jamais deve se tornar popular, o público é que deve se tornar artístico. Essa concepção nietzschiana, tida como elitista, expressa uma visão da arte essencialmente subversiva, sendo dever dela lutar contra todo o conformismo.

 A partir da década de 2010 estarei, dionisíaca e artisticamente, caminhando contra o vento sem horário e sem cartão-ponto,  como um aposentado libertário em busca do tempo apolineamente perdido...
RE-TROPICALISMO

Quando eu soltar as amarras
E sair singrando
Pela vida
Sem horários
Sem destino
No caminho imenso
Do tempo
Que me restar...

Vou finalmente
Caminhar contra o vento
Com lenço
E com documento
Nos bolsos e nas mãos
Pra mostrar:

Que ainda sou eu
Que estou a caminhar
Que eu ainda
Estou caminhando
Contra o vento
E com documento
Pra provar.


2 comentários:

  1. O Celso que juventude você teve e todas as suas escolhas... Estou lendo o Nascimento da Tragedia e seu texto me esclareceu sobre Nietszche e a vida.

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  2. muito bom cara, belas vivencias e teorias...

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