A FEBEM E OS FILHOS DA FLORESTA

        Um tema político que está pegando fogo na mídia e na Assembléia é o projeto 388/09 que trata da descentralização da FASE – Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do RS (a nossa antiga FEBEM). Através do projeto o Executivo pretende vender a área no Morro Santa Tereza, em Porto Alegre, onde ficam situados vários prédios de grande porte da FASE, na base do morro junto à avenida Padre Cacique. O Ministério Público manifestou que tramita uma ação civil pública que busca a regularização fundiária das vilas Ecológica, Gaúcha e Santa Tereza, que ocupam a área do cume do morro, que o governo pretende alienar de cima a baixo.
        A extinta FEBEM padecia de uma inadequação, argumentam seus críticos, pois mesclava, em uma mesma instituição, crianças e adolescentes vítimas de violência, maus tratos, negligência, abuso sexual e abandono, com jovens autores de atos infracionais. Através da Lei 11.800/02 foram criadas duas Fundações: a FASE - Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do RS, que ficou responsável pela execução das medidas sócio-educativas, e a FPE - Fundação de Proteção Especial do RS, que ficou responsável pela execução das medidas de proteção e abrigo, voltadas a crianças e adolescentes vítimas de abandono, violência física e psicológica, maus-tratos ou em situação de risco social ou pessoal.
        Segundo o secretário de Justiça e do Desenvolvimento Social, Luis Fernando Schüler, o projeto de venda do mega terreno com localização privilegiada de propriedade da FASE “é uma dívida histórica para com os direitos humanos do Rio Grande do Sul”, explicando que o sistema FASE foi descentralizado no interior, mas não em Porto Alegre. Ele defende que a iniciativa é determinação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelece como um direito do adolescente permanecer internado na mesma localidade ou no local mais próximo ao domicílio dos pais ou responsáveis. Os deputados da oposição alegam que só poderão apreciar a proposta de alienação depois que o governo definir onde serão construídas as novas unidades da FASE e apresentar um projeto para regularização fundiária da área e de preservação ambiental. Consideram que, caso contrário, a Assembléia não estará possibilitando a melhoria do atendimento aos adolescentes, mas viabilizando um “negócio imobiliário” (conforme comentam as más línguas na internet se trata de uma negociata com a RBS).
        Este assunto me diz respeito por várias razões, mas especialmente por envolvimento afetivo e sentimental. A área em litígio político é o terreno onde brinquei a minha infância, dos oito aos dezesseis anos de idade. Lá dispúnhamos de todos os tipos geográficos de recantos: mata cerrada, rio nativo na selva, onde brincávamos de Tarzan saltando de cipó por sobre as águas (tão fundas que uma vez morreu um garoto afogado: ficou trancado nos galhos caídos no fundo do riacho represado), morros verdes com capins e flores silvestres, penhascos escavados em saibreira (onde já praticávamos o moderno ski-bunda morro abaixo), um campo de futebol tamanho oficial e, sobretudo, uma vista ampla do perfil do centro da cidade e do pôr do sol no Guaíba. Neste cenário cinematográfico brincávamos, como era costume das crianças daquela época, de bolinha de gude, de pião (de um rachar o pião do outro), de pandorga (de colocar gilete no rabo para fazer a pandorga do outro ir à Bahia), de jogo de taco, de fazer partidas de “balãozinho” com bolas de meia (preenchidas com panos), de jogar bilboquê (no qual até hoje sou habilidoso), em correr dirigindo aros de ferro com uma guia de arame torcido, de correr dirigindo pneus de automóveis (sem roda e sem câmera) com uma guia feito de um toco de madeira; e também de brincar de mocinho e bandido e de índios, fazendo bandos contra bandos ou tribos contra tribos, com fundas (bodoques) ou lanças feitas de galhos de árvore. Era uma espécie de pré paintball, lembro que várias vezes saí ferido destes combates de brincadeirinha entre a gurizada do internato.
FALSO BRILHANTE
(1996)

Com alma primitiva culturizada
tenho a rudeza do diamante bruto
sem assimilar os trejeitos da socyte
vim tropeçando pelos salões
até virar seixo rolado
em um anel de brilhante lapidado
que não puxa fio da meia de ninguém.

        No DOPA - Diário Oficial de Porto Alegre – do dia 29 de abril saiu uma matéria de capa noticiando que o município inaugurou mais dez casas-lares que abrigarão até oito crianças e adolescentes em cada uma, com a presença de um casal social selecionado pela FASC – Fundação de Assistência Social e Cidadania.
        Ainda sobre este assunto, foi publicada uma matéria no correio do Povo do dia 11 de junho, cujo título é “internato está em vias de extinção”. Diz que a tendência das instituições é transformarem os internatos em escolas profissionalizantes, sendo que os internatos no Estado só deverão funcionar para abrigar menores infratores com períodos de internação definidos pela justiça. Nos demais casos os internatos não são mais considerados adequados devido à exclusão do ambiente familiar. Estas instituições estão se tornando escolas de turno integral e, no final do dia, a criança volta para casa, como é o caso da Escola Pão dos Pobres, que está realizando esta mudança.
       Assim, o Estado gaúcho deixou de administrar internatos que não sejam para jovens infratores e passou a acolher crianças e adolescentes nas 40 unidades de abrigo chamadas “casas-lares”, onde o jovem tem o direito de ir e vir, ficando inserido nas atividades da comunidade.

       Este assunto também me diz respeito por várias questões, pois eu participei (como cobaia) do projeto pioneiro experimental de implantação de casas-lares em substituição aos grandes internatos públicos, onde a individualidade das crianças ficava diluída na tribalização institucional. Tendo vivido no internato desde os sete anos de idade, somente aos dezesseis anos consegui ser aprovado no famigerado exame de “admissão ao ginásio”, justamente no ano que estavam selecionando uma turma de internos para serem transferidos para uma casa-lar que seria inaugurada na avenida Alberto Bins, no centro da cidade. Posso testemunhar que a ideia do projeto de casas-lares é muito boa, funciona muito bem, pelo menos quando o perfil dos menores reunidos seja propositivo; como foi o caso do nosso grupo. Pena que, sem nenhuma explicação, o projeto foi abortado cerca de um ano e meio depois, e todos fomos despejados; os que não tinham família onde se refugiarem, foram jogados literalmente na rua. Vivemos um drama que para muitos de nós, jovens carentes, deve ter sido traumatizante.
        Mas o que me chamou a atenção nesta reminiscência é de que (sem querer me comparar à ex-senadora e candidata presidencial pelo PartidoVerde, Marina Silva, que só se alfabetizou aos 16 anos de idade) eu só consegui me desvencilhar do curso primário e ingressar no ginásio também aos dezesseis. Por conseqüência deste atraso, sem querer entrar no detalhe de suas causas pedagógicas, só fui concluir o curso científico (o atual ensino médio) aos 21 anos de idade e ingressar na universidade apenas quatro anos depois, e demorei 12 anos patinando para conseguir o canudo de engenheiro. Definitivamente não sou um bom exemplo de aplicação escolar para as minhas filhas, a não ser o de ser persistente.
       A exemplo da Marina Silva, que saiu da floresta amazônica abrindo trilhas na mata e continuou sempre ampliando sua visão de mundo com o seu talento, guardada as proporções, eu saí das matas da FEBEM na Padre Cacique e também procuro continuar sempre ampliando a minha capacidade de conquistar novos domínios culturais. Apenas que devagarzinho e sempre, na manha, sem perder a poesia da vida jamais...

O ELO DO ÉDEN PERDIDO

E pensar que eu próprio
Que hoje vivo desta forma aburguesada
Quando guri, nadava solto no rio
Andava descalço nos matos
E nos morros cobertos de geada
Vivia como índio, em orfanatos
Bebendo, no chão, água de vertente
Sonhando em crescer para virar gente...
E pensar que eu era um filhote de animal humano
Naturalmente feliz no existir cotidiano, sem pensar.

Publicidade: Acompanhe também no link do “Meus blogs”, no menu ao lado, o meu livro de poemas ELOS em construção online em tempo real.



Nenhum comentário:

Postar um comentário