AS CINZAS DO SARAMAGO E AS MINHAS

Sexta-feira - 25/junho

         Morreu José Saramago, o português que colocou o nosso idioma no mapa-mundi da melhor literatura contemporânea. José de Sousa Saramago (nasceu em 16 de Novembro de 1922 — e morreu em 18 de Junho de 2010) foi um escritor, argumentista, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta português. Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou o Prêmio Camões, o mais importante prêmio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efetivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa, sem nunca ter cursado nenhuma universidade.
         Três décadas depois de publicado o seu primeiro romance Terra do Pecado (1947), Saramago retornou ao mundo da prosa, já com 55 anos de idade, publicando o romance Manual de Pintura e Caligrafia (1977). Mas as marcas características do estilo saramaguiano só apareceriam com Levantado do Chão (1980), livro no qual o autor retrata a vida de privações da população pobre do Alentejo.
         Estas características tornam o estilo de Saramago único na literatura contemporânea, sendo considerado por muitos críticos um mestre no tratamento da língua portuguesa. Em 2003, o crítico norte-americano Harold Bloom, no seu livro Gênio: Um Mosaico de Cem Exemplares Mentes Criativas, considerou José Saramago "o mais talentoso romancista vivo nos dias de hoje", referindo-se a ele como "o Mestre". Declarou ainda que Saramago é "um dos últimos titãs de um gênero literário que se está a desvanecer".
       Saramago, tendo sido mestre em criar polêmicas na aldeia global, após sua morte ainda deixou a sua polêmica póstuma: o que fazer com os seus restos mortais? A primeira versão noticiada pelas agências internacionais na mídia, era de que o enterro do escritor seria repartido (não significa que o seu corpo iria ser decepado ou esquartejado, e sim que suas cinzas seriam repartidas): metade ficariam em Portugal e a outra metade em Lazarote, nas Ilhas Canárias da Espanha, onde o escritor passou a viver auto-exilado depois da polêmica criada com o governo português com a repercussão do seu livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
           Hoje, no evento de mutirão de leitura de sua obra, alusivo ao sétimo dia de sua morte (que por ser o falecido um ateu ferrenho, não foi celebrado com a clássica missa cristã), circulou a notícia definitiva(?) sobre a decisão da viúva: as cinzas da cremação do corpo do Nobel de literatura permanecerão em um jardim em frente da fundação do escritor em Lisboa, na Casa dos Bicos. As cinzas serão enterradas ao lado de uma oliveira centenária originária de Azinhaga, aldeia natal do escritor. As cinzas ficarão num local público onde haverá uma pedra em que será gravada a frase "mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia", que faz parte do romance "Memorial do convento", onde os leitores poderão sentar para ler seus livros...

       A polêmica póstuma deixada pelo Saramago faz conexão com a minha primeira vivência do ritual de velório de corpo presente num crematório, que também vem a ser a minha opção de destino final da matéria do meu corpo: virar cinzas e reintegrar-se ao seu ciclo geológico na natureza, até passar novamente pela purificação elementar de minério no caldeirão incandescente do magma no centro do planeta Terra, e vir à tona novamente em diferentes formas. É a máxima do “nada se perde, tudo se transforma” elevada às extratosferas metafísicas.
       O destino me levou a estudar Engenharia de Minas para que eu pudesse sedimentar esta compreensão estóica da natureza da vida, mas foi o estudo de filosofia que me deu a dimensão metafísica do seu significado. Com estes fundamentos pude superar as pressões teológicas que acenam com compensatórias eternidades espirituais e compreender que a eternidade do ser animal consiste justamente em ele ser ínfima parte do eterno universo cósmico, como árvores e rochas e estrelas e planetas e sistemas solares e galáxias, que surgem e somem ciclicamente com o tempo, com resignada harmonia budista.
         Controvérsias ontológicas à parte, voltando à questão do crematório, o procedimento do ritual social do luto nesta modalidade de velório é bem menos traumático do que o convencional, especialmente no tocante ao último movimento que consiste no pedreiro do cemitério cimentando a lápide, seja da gaveta na parede ou do jazigo enterrado. Ao invés destas cenas e ruídos grotescos, ouve-se uma música clássica espiritualizante enquanto o caixão contendo a matéria inerte do falecido desliza por uma esteira em lenta e definitiva despedida, até desaparecer atrás de uma cortina que se fecha encerrando o cerimonial do luto.  
        Logicamente que, por via das dúvidas, todo o culto litúrgico de despedida também é feito numa moderna capela ecumênica dotada de confortáveis poltronas, à semelhança de salas de teatro em torno do palco sobre o qual jaz um ator inerte em sua derradeira cena nesta forma humana de ser, sob a batuta de um padre ou pastor ou lama que encomenda o corpo e, com a autoridade de seu cargo, recomenda que o seu espírito tenha um melhor destino no além, caso haja o além.

          Outra vez, controvérsias teológicas à parte, voltando à questão do crematório de cadáveres, um problema residual que sempre sobra para os que ficam é: o que fazer com as cinzas do ente querido que foi cremado? É muito comum este assunto da destinação final das cinzas do corpo não ser tratado a tempo com o falecido dono do corpo, e os parentes acabarem se apegando a estes seus restos mortais e repetindo o culto milenar de mantê-lo fisicamente num determinado lugar onde possa ser reverenciado com flores em datas especiais, como na semana santa dos católicos. Para contemplar tais tendências humanas de apego, os crematórios já desenvolveram o chamado “Columbário”, que é uma sala com estantes onde ficam as caixinhas de madeira contendo as cinzas, à semelhança de livros grossos de capa dura, com o nome e até fotos do antigo corpo que foi cremado. O Columbário, pelo que eu entendi, é uma espécie de sala de passagem das cinzas, até que os familiares se decidam o que fazer com elas. Para os mais apegados o crematório já tem a área de Jazigo, à semelhança dos cemitérios convencionais, onde as cinzas são guardadas em definitivo em uma gaveta própria com direito a lápide e tudo o mais, apenas em menores dimensões. Há casos pitorescos de pessoas que ficam com as cinzas na estante da sala ou na mesinha de cabeceira do cônjuge, mas o mais natural é desenvolvermos o desapego e dispersarmos o pó (ao que ficamos reduzidos após o corpo ser cremado) em algum lugar que era do agrado do falecido, tais como parques, jardins, no campo de futebol do time do morto, no rio da cidade onde nasceu, no mar, na areia da praia, ao vento...
         As possibilidades de destinação final das cinzas são infinitas, mas quando não há uma determinação prévia em vida, acaba parecendo desrespeitoso para com o morto se “jogar fora” seus restos mortais. Pois foi pensando nesta questão prática que eu saí da minha primeira experiência em um ritual funerário de crematório, que é uma novidade muito recente em nossa sociedade...
        “Se Deus quiser eu não vou morrer tão” e repito três vezes, batendo supersticiosamente com as juntas dos dedos na madeira, mas ficou de maneira incontornável colocada a questão de eu ter que definir o que quero, afinal, que façam com as minhas cinzas para o culto da minha despedida desta forma humana de ser no mundo?

        Ainda que eu tenha ficado ainda mais convencido de que a cremação é a modalidade funerária que recomendo filosófica e socialmente, confesso que não é uma questão fácil de se tratar, e é justamente por isso que ela geralmente não é tratada em vida e acaba provocando tantos problemas póstumos. Nem mesmo o incrédulo Saramago, que era um homem brilhante aos 87 anos de idade e que sabia que o seu tempo estava acabando, conseguiu transpassar na sua visão de vida o ensaio da cegueira do pós-morte e elaborar o seu destino final. Quando começamos a pensar seriamente nesta questão, parece que estamos sendo tétricos e agourentos. Somos culturalmente condicionados a não pensarmos na morte, em especial na nossa própria morte, sob pena de sermos taxados de macabros e depressivos. Pensar na morte, mesmo que objetivamente, está vinculado socialmente à negatividade, em contrapartida, portanto, ser positivo é não pensar! A não ser em casos de mortes ocorridas lentamente por doenças fatais, em que a morte é uma presença indesejada que se anuncia e avança sistematicamente, é que ela pode ser pensada e tratada ainda que com alguma resistência; nos casos de mortes repentinas e inesperadas, nem pensar que alguma coisa possa ter sido pensada previamente sobre este tema tabu, no máximo a manifestação ocasional de optar pela cremação.
          Mas, controvérsias sociológicas à parte, comecei a refletir o que eu gostaria, afinal, que fizessem com as cinzas do meu corpo quando nele o que penso que seja o tal eu psicanalítico ou espiritual, com o seu tênue sopro de vida, já não mais se manifestar presente. Percorri mentalmente, por dias e semanas após o evento, as possibilidades de locais para a destinação final dos meus resíduos sólidos, até que o encontrei e ao torná-lo público sinto um leve sentimento de superação dos medos e preconceitos irracionais sobre a morte.
        Já no primeiro livro de poesias minhas que encadernei, intitulado “Reunião de Vinte Anos”, há um poema datado de 1970 (quando eu tinha dezesseis anos) denominado ILHA que indica o referido local:

Entre o encanto da natureza
E as calmas e plácidas águas de um rio
Semi levado pela correnteza
E num terno recanto sombrio
Por sobre as vagas do rio escuro
Com um vago olhar...
Deixo morrer as mágoas
Do meu eu tão inseguro
Que vê o mundo por estourar
Quisera eu poder
Aqui passar os restos dos meus dias
Desbravar a virgem selva
De tudo e de todos esquecer
Alimentar-me de pescarias
Dormir ao relento e na relva
Apreciar o sol a se esconder
Deixar o mundo sempre distante
Poder gritar, rir e chorar
Ver sempre este lindo horizonte
Que reflete neste minúsculo mar
Mas...adeus ilha dos meus sonhos
Nunca mais me verás voltar.
          A ilha a que referem os versos realmente “nunca mais me verá voltar”, pois ela já não mais existe por ter sido incorporada à margem pela intensa dragagem que o rio Guaíba sofreu nos anos que se seguiram à confecção do poema. No quarto livro de minha autoria que encadernei artesanalmente, este também reunindo poesias, intitulado “Beco Sem Saída”, consta uma outra referência ao mesmo local no poema denominado A Morte do Sol, datado de 1975 (quando eu tinha vinte e um anos de idade):

Como é triste a morte da flor
Dos homens e das aves
A morte dos inferiores é lúgubre
Quem me dera ter a morte do sol:
Percorrer resignado o meu caminho
Até a máxima elevação a pino
E quando começar o descer triunfal
Espelhar-me em um rio calmo
Ver-me no fundo, no rio...
Depois, próximo da linha final
Explodir e fazer-me colorido
Tingir o rio e o céu com minhas entranhas
Perder-me em minhas cores
Para que quando as pessoas
Ao verem-me morrer se maravilhem
E para que, quando pensarem que estou morrendo
Perdido em minhas cores...
Perdendo a minha luz...
Que a luz que vêem seja de minhas cores
E que eu já esteja morto
Nascendo no novo dia...
         Este pôr de sol e este rio ainda existem e devem ser perenes por constituírem o principal cartão postal de Porto Alegre. Apesar de já terem trocado academicamente a classificação do rio para lago ou estuário, é ali na antiga Ponta da Cadeia, junto à Usina do Gasômetro, onde os portoalegrenses costumam se sentar a tomar chimarrão nos finais-de-semana para apreciarem e até aplaudirem o espetáculo do sol poente se perdendo em suas cores derramadas no Rio Guaíba (que para mim será sempre Rio com R maiúsculo!) o local que elegi para ser o destino final dos meus restos mortais. Mais precisamente na margem, perto do “maconhódromo” (onde jovens por gerações consecutivas costumam fumar seus baseados) e no meio dos matacões de pedras que estabelecem uma faixa limítrofe entre a areia e a água, em que as minhas cinzas tanto podem ser levadas para a areia ou engolidas pelas ondas, como também podem ficar sedimentadas neste interregno. Assim, nunca se saberá se uma das minúsculas partículas de poeira daquela região é meramente pó de areia ou cinza de baseado ou é parte do que foi o meu corpo, especialmente quando entrar no olho de alguém e o fizer lacrimejar com os olhos tingidos de vermelho pela resplandecente morte do sol de cada dia...
         Desta forma eu construí para mim uma espécie de eternização pagã num paraíso, pois convenhamos que a paisagem do sol poente portoalegrense é divina e o local mais próximo, a primeira fila de cadeiras do auditório deste espetáculo é na ponta do Gasômetro, junto à margem do rio. Lá estarei eternamente participando das rodas de violões, de chimarrão e de todas as demais rodas que por lá se formarem...Estarei sempre na roda.





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