LER dói, é uma doença do trabalho tanto quanto as dores de coluna de quem pegou na picareta abrindo valeta nos velhos tempos do Dmae. Foi preciso que ela adquirisse uma lesão por esforço repetitivo com doloridos sintomas de tendinite crônica, que se agravou criando grande dificuldade de continuar cumprindo sozinha todas as atribuições da lida diária, para finalmente reclamar de sua irmã gêmea, que passou a vida inteira se aproveitando de sua instintiva boa vontade para fazer as coisas. Ela sabia que a irmã não fazia por maldade ou por preguiça, pois na verdade a irmã foi criada como portadora de deficiência motora, sem habilidade fina de movimentos e débil de força para os trabalhos pesados. A Esquerdima viveu sempre como mera auxiliar e na sombra da irmã Direima, mas com a aquiescência desta.
As duas irmãs estavam sempre literalmente juntinhas e, mais do que isso, como se fossem siamesas (não gatas, mas xipófogas), se posicionavam sempre da mesma forma, seja na mesa, na rua ou na cama, compondo um corpo unificado a se deslocar pelo mundo, sempre com a Esquerdima assumindo o lado esquerdo e a Direima a metade direita do corpo duplo. Assim, meio por brincadeira, mas também pelo cumprimento dos desígnios cósmicos do destino contido no próprio nome, o pessoal passou a chamá-las de irmãs Direita e Esquerda, para designarem respectivamente Direima e Esquerdima.
Até então, antes de aparecer as patologias naturais dos corpos que atravessam o limiar que os caracterizam como idosos, a coisa funcionava bem, com a Direima (a irmã Direita) assumindo a sobrecarga de afazeres práticos e iniciativas lógicas da vida, enquanto a irmã Esquerda ficava perdida em seus devaneios e olhares distantes pela janela, sendo preciso que fosse solicitada a sua ajuda em cada pequena tarefa que precisasse do seu auxílio. Mas agora, com a lesão e a dor crônica provocada por praticamente carregar a irmã Esquerda nas costas, Direima decidiu que era hora de haver uma distribuição das tarefas diárias entre as duas irmãs.
Como a irmã Esquerda não havia adquirido destreza para executar sozinha a maioria absoluta das ações mais comuns e rotineiras, a irmã Direita teve que desenvolver um programa de treinamento para gradativamente ir repassando algumas atividades do seu domínio. A primeira missão transmitida foi de que a irmã Esquerda assumiria o comando do mouse sempre que estivessem no computador. No começo era uma desgraça, a seta do mouse na tela parecia uma mosca tonta sem nunca acertar o alvo onde clicar, isso quando a Esquerdima não deletava involuntariamente, por imperícia, arquivos ou trechos de textos.
Meses depois, a irmã Esquerda descobriu que era capaz de aprender a ter habilidades para fazer as coisas que a irmã Direita fazia com tanta destreza. Com o mouse completamente dominado, tomou atitude e passou a ter iniciativas próprias de ação: abrir e fechar as torneiras, selecionar a chave no chaveiro e abrir e chavear as portas, pentear os cabelos, escovar os dentes, passar manteiga no pão e esfregar sabão durante a lavagem da louça, ao invés de, como era de costume, meramente segurar a louça para que a Irmã Direita fizesse todo o esforço. Empolgada com os progressos da irmã, a irmã Direita passou a delegar tarefas mais complexas, tais como operar o garfo com equilíbrio nas refeições domésticas e manobrar o papel higiênico nos delicados movimentos de secagem e limpeza íntima. Na sequência, entrando na fase do treinamento das atividades de risco, a irmã Esquerda foi iniciada no manuseio do aparelho de depilação com lâminas e no de empunhar a faca de cozinha para picar cebolas e tomates.
As pesquisas da neurociência comprovam que o lado esquerdo do corpo é comandado pelo hemisfério direito do cérebro, o território onde vicejam a criatividade e a intuição. Dizem que cerca de 80% do nosso dia-a-dia é ocupado por rotinas comandadas pelo lado esquerdo do cérebro, que apesar de terem a vantagem de reduzir o esforço intelectual, escondem um efeito perverso: limitam o cérebro e abrem a porta para o velho Alzheimer se instalar como um vírus no sistema mental. Consciente destes conhecimentos científicos, a irmã Direita, que se sabia comandada pelo lado esquerdo do cérebro, passou a reconhecer os malefícios que o seu instinto lógico e compulsivo de exercer domínio sobre a sua irmã Esquerda acarretou, prejudicando a vida das duas, uma por não ter tido uma cultura de desenvolver suas verdadeiras potencialidades e, a outra por ter sido extremamente exigida até a exaustão doentia da dor crônica.
Envelhecer juntas em harmonia, dividindo as atribuições, passou a ser o propósito das duas irmãs, especialmente depois de compreenderem que os desajustes havidos entre as duas não era culpa delas, era consequência lógica da concepção cultural de nossa civilização ocidental. O nosso alfabeto, por ser silábico, estimula o lobo esquerdo; os ideogramas dos orientais, utilizando símbolos, desenvolvem o lobo direito. No idioma japonês, por exemplo, que são usados símbolos e sílabas, os dois hemisférios são estimulados no ato da leitura. A meta de ambas não chega a querer que a irmã Esquerda aprenda a escrever, que seja tardiamente alfabetizada no manuscrito, até porque ela já é bem alfabetizada nas escritas digitais; mas que pelo menos adquira destreza (além de poder acionar o moderno relógio ponto digital) de assinar o próprio nome com perfeição, para que possa assumir a representação jurídica comercial de ambas, assinando documentos e cheques, caso a tendinite evolua para um impedimento clínico da já esgotada irmã Direita.
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