A ALIENAÇÃO ESTÓICA DE UM APOSENTADO

       Por estas estranhas coincidências do acaso, depois de ter assistido ao divertido filme Carlota Joaquina – A Princesa do Brazil de Carla Camurati, com Marieta Severo e Marco Nanini (sobre o período de 1807 à 1820), me caiu nas mão o livro  A Brevidade da Vida, de Sêneca (4 a.C – 65 d.C.), onde este pensador romano  escreve sobe o real significado da vida e a importância de se reservar o tempo para a própria pessoa.
Tendo sido nomeado preceptor do futuro imperador Nero, Sêneca afasta-se da vida pública após os desequilíbrios do seu pupilo (que manda matar a própria mãe) e retira-se para a solidão dos estudos filosóficos. Nesta obra Sêneca cita o exemplo do imperador romano Augusto – o Divino, que sempre manifestava o seu desejo de buscar a liberação dos encargos sociais e optar pelo repouso da aposentadoria, na esperança de um dia viver só para si.
Vale lembrar que Augusto, cujo nome era Otávio (que governou do ano 18 a.C. até 14 d.C.), contemporâneo de Jesus Cristo, foi adotado por  Júlio César em testamento como seu filho e sucessor. Aquele que, tendo sido nomeado como o primeiro imperador pelo Senado e o máximo pontífice religioso a pedido do povo, acabou com a ditadura e promoveu a proteção dos artistas, tais como Virgílio, Horácio e Ovídio; com exceção do orador Cícero (que aperfeiçoou a prosa latina), o qual, após o assassinato de Júlio César por Brutus, enfrentou Marco Antônio e foi degolado a mando de Otávio, quando tentava fugir para o Oriente. Sua língua e suas mãos foram expostas nas escadarias do senado. Contudo, após Augusto ter governado com eficiência, austeridade e estabilidade, com sua morte teve o mês de agosto  batizado com o seu nome e foi divinizado como “O Divino Augusto” pelo senado romano.
Cabe recapitular, também, que o nome César tornou-se título da dinastia familiar que se estendeu por 12 césares, entre os quais, os mais famosos são: Augusto, Tibério, Calíguna, Cláudio, Nero e, mais tarde, Marco Aurélio (161-180 d.C.), o imperador filósofo, o último expoente do estoicismo romano com as suas Meditações de como encarar a vida para se viver bem.
Pois bem, o legado lusitano de D. João VI e Carlota Joaquina, bem como de toda a corte portuguesa, não foi nada filosófico e, muito menos, estóico. Pelo contrário, vem daí toda esta tradição de falcatruas dos parlamentos brasileiros: das compras de favores, títulos e apoios políticos. Os conchavos e os golpes estão no genoma da alma brasileira que foi civilizada através da consagração do populismo, sem compromissos sociais e sem valores éticos, mas com muita retórica emotiva de enganar o povo.
Ainda bem que a dinastia dos “Braganças” não se estendeu tanto quanto as dos césares romanos, mas seu estrago foi genético no evolucionismo da raça brasileira. Nem mesmo a independência nacional foi com batalha e tampouco o golpe da proclamação da república e o fim da monarquia foi capaz de gerar algum herói nacional, tivemos que nos agarrar no pobre do Tiradentes que entrou de gaiato e virou o astro de uma história que foi resgatada para servir (forçadamente) de símbolo da romântica resistência do povo brasileiro ao império colonial: a poética Inconfidência Mineira.
          Além da sífilis, é claro, herdamos do nosso colonizador a formação de três tipos de políticos no Brasil. No alto clero há o político do tipo “roubo, mas faço” do Maluf (e tantos outros adeptos das malufices na moita).O segundo tipo é os que “nada fazem e tudo roubam” (extorquem e subornam feito Sarney, Temer, Renan Calheiros e demais embusteiros). E o terceiro, mais raros, são do tipo “nada faço, mas não roubo” (que ainda conseguem engambelar  inspirando alguma confiança popular, tipo Simon, Paim e correlatos). Há também réplicas e imitações destes mesmos tipos de políticos no baixo clero (onde predomina a picaretagem de abutres brigando pelas carniças deixadas pelos predadores do alto clero).
          Mas qual é a conexão, afinal, entre o filme Carlota Joaquina e o livro do filósofo estóico  Sêneca? Bem, do filme vêm as condições da sociedade em que vivo aprisionado e do livro  vêm as idéias que me libertam. O elo é que eu me identifiquei demais com a figura do “Dono do Mundo” na época do Império Romano, o imperador Augusto, com o fato dele sonhar com o descanso da aposentadoria, de viver para si, de aproveitar o tempo que fluí para bem viver e não para se manter meramente ocupado, correndo atrás do rabo, querendo mudar o mundo com ilusões coletivas.
         Guardada as proporções, é como eu me sinto, enquanto politicamente aposentado: dispensado eticamente de votar em alguém, libertado da maldição de repetir indefinidamente o ciclo situação-oposição com o investimento energético de esperanças reais num jogo de faz de conta, “do me engana que eu gosto”. Agora que já estou também profissionalmente aposentado, é como estar realizando o sonho do grande imperador: libertado da crença na maldição moderna que apregoa que o trabalho enobrece a alma. É o contrário, o trabalho embrutece o homem em troca do mísero sustento de sua sobrevivência a fim de poder continuar trabalhando, cumprindo uma perpétua sentença semi-escrava de trabalhos forçados para a mais valia de outros. Trabalhar é apenas um mal que foi tornado necessário pelo materialismo histórico. Estou pronto para ter o meu tempo só para mim, para fazer o que quiser com ele, sem medo do tédio de não saber preenchê-lo. Sem medo de ser feliz comigo mesmo.
          No entanto, para assumir esta alienação deliberada em conseqüência lógica do puro racionalismo, é preciso que tenhamos o suporte espiritual de uma doutrina que nos ajude a aceitar a realidade tal como ela é neste exato momento, aqui e agora, que é o tempo presente onde a vida se desenvolve e se revigora. Enquanto o espírito humano evolui lentamente ao longo da história, a salvação dos mortais seres racionais que desmistificaram com a ciência a antiga fé em um criador do mundo, é adotarem a atitude estóica de viver enquanto elementos do universo, enquanto partículas do todo. Do pó viemos e a ele voltaremos. A atitude estóica é a do guerreiro que não se deixa abater, sempre de cabeça erguida e acreditando no milagre que é estar vivo em cada momento vivido, atento e aproveitando ao máximo esta convivência consciente com o mundo cósmico.

Assumo, pois, esta minha atitude de abstenção política e de elogio do ócio da aposentadoria, não como uma manifestação anarquista, mas  como uma Alienação Estóica.

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