Após ter lido o livro História do Cerco de Lisboa,
de Saramago (único ganhador do Nobel de
Literatura de língua portuguesa), coincidiu de eu ler um artigo de jornal
intitulado “O longo cerco: como a capital se tornou, enfim, farroupilha”,
escrito pelo escritor gaúcho Marcel Citro. Na ocasião, que também ocorreu a
polêmica abordada pelo professor Luis Augusto Fischer, de ser ou não o
gauchismo uma “Tradição Inventada” e o Acampamento Farroupilha parecer um
“favelão gaudério”, me intrigaram as circunstâncias históricas semelhantes e os
diferentes desfechos dos cercos ocorridos nas cidades de Lisboa e de Porto
Alegre.
O Cerco de Lisboa, que durou vários meses no ano século
XII, integrou a Reconquista cristã da península Ibérica, com a expulsão dos
árabes que ocupavam a região por quatro séculos. Cerco este realizado pelas
forças de D. Afonso Henriques que realizou a formação do reino de Portugal como
uma nova nação. O antecedente histórico do cerco de Porto Alegre era de que, em
decorrência dos impostos imperiais sobre o charque, a revolta foi assumindo o ideário
progressista de abolição da escravatura e de democracia sob um sistema
republicano.
Saramago, em sua narrativa sobre o Cerco de Lisboa, objetiva
demonstrar a impossibilidade da história total e a subjetividade do
historiador, buscando refletir sobre o discurso oficial da história acreditada,
acessando outras possibilidades que foram relegadas pelas versões tomadas como
canônicas. Introduzindo personagens da “raia miúda”, que não tiveram voz, e
transformando as figuras históricas em personagens com suas fraquezas e
perversidades, o escritor lusitano procura também esmiuçar as contradições das
fontes que fixaram o discurso histórico dos vencedores.
Este é o ponto dos desfechos contraditórios dos cercos
de Lisboa e de Porto Alegre. Aqui, noves meses depois, o domínio da cidade
pelos revolucionários terminou em vexame: os legalistas imperiais se apossaram
do quartel farroupilha, deram o toque de reunir em plena madrugada e, à medida
que os farrapos acorriam para atender ao chamado, iam sendo presos, um a um, no
quartel. Por estas e por outras, Porto Alegre ganhou o título de “Mui Leal e
Valerosa” cidade do governo imperial, ou seja, anti-farroupilha.
Naturalmente que no romance histórico Saramago trama
um caso de triângulo amoroso entre um soldado português heroico e uma galega
que acompanhava a guerra para servir de objeto sexual a um cavaleiro em cruzada
(como tantos outros mercenários estrangeiros contratados para ajudar na luta
contra os árabes, a preço do que pudessem saquear com a vitória). Analogamente,
na série de TV “A Casa das Sete Mulheres” ganhou destaque o romance do estrangeiro
herói de dois mundos, Giuseppe Garibaldi, o italiano que tentou libertar Roma
do poder papal e que, por aqui, se tornou o comandante da marinha farroupilha.
Garilbaldi, que andou arrastando asas para a Manuela, sobrinha do Bento
Gonçalves, acabou caindo de amor e levando de vento em popa, para lutar e se
tornar heroína no Velho Mundo, a catarinense Anita Garibaldi.
O estancieiro Bento Gonçalves, com sua fuga
espetacular da prisão, foi o personagem gaúcho de maior destaque na epopeia
farroupilha. Porém, foi no romance O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, que
se formou o herói literário típico do gauchismo: festeiro que adora pelear numa
guerra, bonitão e mulherengo. O Capitão Rodrigo Cambará é o nosso Martin
Fierro, gaúcho que se derreteu de amores pela Bibiana, mas sem perder a sua
índole libertária de índio guerreiro que
acabou morrendo jovem de morte matada
nas peleias entre Ximangos e Maragatos.
Os anais da história oficial de Portugal registra o
chamado “Milagre de Ourique”. Consta, pois, que Dom Afonso Henriques, durante a
Batalha em Ourique (cuja vitória foi fundadora do novo país lusitano), teria
tido um sonho em que Deus lhe aparecera dizendo que venceria todas as batalhas
e que veria Jesus no dia seguinte, como de fato teria ocorrido, comprovando o
milagre e caracterizando oficialmente o povo português como eleito por um
desígnio divino. Saramago ironiza se não teria sido mais útil Jesus Cristo ter
aparecido para os mouros, convertendo-os. Afinal, eles foram massacrados e
morreram como infiéis...
Assim como no cerco do rio Tejo, no do rio Guaíba também
consta nos anais da história rio-grandense uma espécie de “Milagre da
Ressurreição Farroupilha”. Terminada a Guerra Farroupilha, em 1845, com a República
Rio-Grandense desfeita, os escravos negros que lutaram dez anos pela causa
foram chacinados em Porongos, e o General Bento Gonçalves morreu dois anos
depois em total ostracismo político. Contudo, as façanhas e os ideais dos
derrotados farroupilhas foram pouco a pouco sendo absorvidos e ressuscitados pelo
discurso oficial através da invenção do gauchismo.
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