Com muita
sorte, nós aposentaNdos vivemos o rito de passagem de nos tornarmos os pais de
nossos pais, salvo os casos de orfandades repentinas e precoces em que os pais
não morrem de velhice generalizada, e nos deixam sem termos tempo e condições
de lhes darmos a merecida atenção antes deles partirem de nossas vidas.
Fabrício Carpinejar captou poeticamente esta passagem em sua crônica “Pai de meu pai: ...É quando aquele pai que
segurava com força nossa mão já não tem como levantar sozinho. É quando aquele
pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, tudo é longe. É
quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria
roupa. É quando aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em
paz. O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que o seu filho está
ali, ao seu lado.”
Em 2011 eu construí
as condições exigidas para abrir uma
passagem para o portal do domínio do meu tempo, com o ganha-pão garantido pela
aposentadoria do engenheiro que fui, tenho me dedicado a ser um pouco pai de
minha mãe. O mesmo fenômeno cármico está ocorrendo com a minha mulher, que em
agosto de 2013 conquistou o direito trabalhista à alforria da sina de ter que
cumprir cargas de trabalhos diários para garantir o seu sustento, podendo se
aposentar a qualquer momento que quisesse. Contudo, para a Magda sair sem perdas
financeiras, que é o que todo mundo almeja, faltava ainda ela conseguir
incorporar a recém criada Gratificação por Desempenho de Atividade Essencial (GDAE)
ao salário, para tanto faltariam mais doze meses de trabalho, até julho de
2014.
Porém os
astros conspiraram pela soltura em caráter de emergência das suas amarras
trabalhistas, com a vida se encarregando
de fazer surgir-lhe uma demanda familiar emergencial. Exigida pelas
circunstâncias, necessitou propiciar um processo de dignidade ao seu pai que,
caducando, se dirige atrapalhado para a fatídica barreira dos noventa anos de
idade. O Seu Gugo, o pai da Magda, entrou derrapando no triste purgatório da
falta de autonomia da quarta idade (a velhice senil)), quando precisamos ser
pais de nossos pais; conforme a inspirada crônica do Carpinejar: Fase de retribuir o amor com a amizade da
escolta.
O Seu Gugo foi
um comerciante durante toda a vida, e há mais de quarenta anos esteve atrás de
um mesmo balcão comprando de fornecedores e vendendo para consumidores na sua
loja na Avenida Alberto Bins. Decaiu, ao
longo do tempo, do comércio de novidades estrangeiras para o de peças de
fogão a gás e liquidificadores. Ele precisava ser convencido gradativamente de
que era chegado o momento de fechar as portas, liquidar o estoque, desocupar a
loja alugada e dar baixa na sua pessoa jurídica, registrando o óbito de sua
empresa com toda a dor do luto de quem está morrendo junto como pessoa física. Era
preciso abandonar a vizinhança que povoava a sua vida de vozinho solitário. E
alguém precisava fazer isto por ele e com ele, de forma que o seu luto
incapacitante fosse elaborado da melhor maneira possível. Para cumprir esta
missão ela surpreendeu a todos os seus colegas do Dmae, antecipou em um ano o
seu pedido de aposentadoria e, com isso, abriu mão de vantagens financeiras que
teria pelo resto da vida. Coube à filha ser mãe de seu pai, coube à Magda cuidar
de seu Gugo.
Assim, todas
as planificações que fizemos pré-aposentadoria podem ser atropeladas (o que
pode acontecer com qualquer um de nós), e de repente nos vermos lançados numa
grande missão com integral envolvimento físico e emocional. Primeiro, sem saber
a gravidade e a dimensão da enfermidade do Seu Gugo, ela foi usufruindo todas
as férias e licenças prêmios que dispunha; depois percebeu que não tinha mais
volta, que teria que se jogar de corpo e alma para conduzir pelo braço aquele
que a levou pela mão durante toda a sua infância. Sem tempo nem oportunidade de
se despedir nem de elaborar seu próprio luto pela perda repentina do seu
ambiente e colegas de trabalho, no turbilhão das circunstâncias a Magda seguiu
o seu instinto maternal de acolher o seu nenê idoso: adotou o seu velho pai
para adaptá-lo carinhosamente ao novo ciclo da existência, ao ciclo de
dependência de cuidadores.
Quando a mente
envelhecida penetra dentro de uma névoa, quando os olhos já não distinguem com
nitidez a realidade tomada de vultos e esquecimentos, quando a audição
enfraquecida isola a velhice senil numa ilha de silêncio, quando as pernas
cambaleantes provocam tombos perigosos e tudo fica longe, é quando a perda de auto-suficiência dos
nossos pais os tornam nossos filhos. Isso é um ônus e um prêmio, pois só acontece
para aqueles que têm a sorte grande de ainda terem seus pais vivos, e isso
todos gostaríamos de ter para sempre. A
propósito, Carpinejar sentencia: Feliz do
filho que é pai do seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece
somente no enterro e não se despede um pouco por dia.
Li em algum
lugar que a última fronteira da vida é quando nos tornamos órfãos adultos,
quando ficamos sem pai nem mãe, quando não há mais nenhuma geração se
interpondo entre nós e a morte. É quando nós passamos a ser a bola da vez, é
quando se inicia o rito do prelúdio do fim. É quando nós, os recém ou quase idosos,
que já fomos pais de nossos pais, provavelmente nos destinamos para o
derradeiro rito de passagem existencial, que é o de também nos tornarmos filhos
dos nossos filhos antes de partirmos desta vida, queiramos ou não!...
Felicidades para o casal e seus "novos filhos". Também sou mãe de minha mãe. Um forte abraço. Carla Alterio
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