Antes da premiação do Oscar 2013 eu havia
assistido a quatro filmes indicados: acertei vendo o Lincoln e Os Miseráveis
que ganharam respectivamente o Oscar de melhor ator e de melhor atriz coadjuvante. Mas, se errei feio
escolhendo o filme Indomável Sonhadora que não levou prêmio nenhum, e errei optando
por não assistir Argo, eleito como o melhor de todos, pelo menos acertei em
cheio assistindo ao filme Amor, escolhido como o melhor filme estrangeiro em
Hollywood.
Amor já havia ganho todos os
prêmios na França, ganhou o César 2013 (espécie de Oscar francês) para melhor
filme, ator e atriz; e a Palma de Ouro como melhor filme do charmoso Festival
de Cannes. Amor mostra a decrepitude da vida na velhice, etapa da existência
mais sujeita a acidentes vasculares cerebrais (AVC), os quais podem ocorrer com
qualquer um, acontecem nas melhores famílias, inclusive nas nossas.
Entrar nos “sessenta” inteiro, sem medicações de uso continuo, é um
rito de passagem que se tornou benéfico, só trás vantagens legais. Embora eu
recém em 2014 estarei entrando no jardim de infância da terceiridade, quando me
tornarei um “modernoso sessentão” do terceiro milênio, já estou fazendo
intensivo aprendizado em geriatria, tipo residência médica, com a minha mãe que está completando 90 anos.
Mesmo sem nenhum AVC, mesmo saudável, como quase todo mundo depois dos oitenta,
ela já vive as agruras do final de carreira, as quais estou acompanhando e
prestando bastante atenção, e tentando
amenizar no que for possível. Estou ligado neste tema por saber que a “barreira
dos oitenta” é o próximo grande rito de passagem na vida de um aposentado,
depois da qual já estamos no lucro ou no prejuízo, pagando as multas pelos
excessos cometidos nas fases anteriores.
Até os 85 anos a Dona Ciça mantinha a sua casa morando sozinha e sendo
o centro de convergência dos filhos, netos e bisnetos dispersos pelo mundo. Até
que tonturas e vertigens breves incutiram o medo de ela ficar sozinha no
apartamento durante as noites, depois lapsos eventuais de esquecimentos de
panelas no fogão com o fogo aceso foram minando a segurança da viúva matriarca. Seguiu-se o estágio da busca
de uma companhia, inicialmente noturna, depois para dia e noite; uma pessoa que
ajudasse nas tarefas domésticas e, sobretudo, que se harmonizasse com a dona da
casa... Feitas as experiências, vieram as decepções que são naturais e até
logicamente previsíveis: não funciona nem intrusos na casa do idoso, nem com o idoso
de intruso na casa dos outros.....
Então, Dona Ciça tirou da manga e jogou na mesa uma carta que tinha
guardada: Quero ir morar num pensionato de idosas! Os filhos se surpreendem, confundiam
pensionato com geriatria, achavam um destino deprimente, ficaram contrários.
Ninguém quer abrir mão da rotina de correr pra casa da mamãe, vovó ou bisa,
quando bem entender, e ser bem atendido com mesa e cama... Tudo bem, assimilado
o golpe, saímos a pesquisar na cidade para vermos se existem opções
interessantes e sustentáveis que ofereçam casa, comida e companhia para a nossa
viúva matriarca. Dona Ciça que começava a reconhecer que não tem mais forças
para manter o clã como sendo anfitriã, que precisa passar a ser hóspede
eventual de seus descendentes e ser servida de mesa e cama.
Mais uma vez ela tinha razão. Visitamos várias casas, desde geriatrias
e pensionatos até depósitos de velhinhos. Encontramos o que procurávamos no
Pensionato Bom Pastor. No pensionato a Dona Ciça passou a viver como num
apart-hotel, tem o seu espaço privado
com suas coisas, montou sua casa num cômodo amplo, e compartilha com outras
idosas as áreas comuns e as refeições. Livre das tarefas domésticas de fazer
compras, estocar alimentos, cozinhar e fazer faxinas, finalmente quem sempre
serviu passou a ser servida.
Contudo, uma frase da Dona Ciça, que é uma boa frasista (sem nunca ter
entrado numa escola, sabe ler e escrever com letra melhor do que a minha), me
chamou atenção para a perda de autonomia dos velhos, que é o tema do filme
Amor:
-Me tiraram o fogo, não cozinho
mais nada. Só me restou aprender a aquecer no tal de microondas a comida que
fazem para mim.
Perder o domínio do fogo é bastante simbólico para uma ex-cozinheira de
restaurante. Assim como a surdez que vai
fazendo com que ela não consiga mais acompanhar direito as tramas das
telenovelas (nem as conversas em volta), também é emblemática a catarata que vai
lhe roubando a visão e limitando a sua capacidade de fazer crochê e de ler o
jornal diariamente, suas ocupações prediletas. Há de envelhecer-se, mas sem perder
a autonomia, pois pensionato não tem serviço de enfermagem, exige a
auto-suficiência dos seus inquilinos para os cuidados pessoais, inclusive de
medicações.
Aos poucos o
idoso vai se isolando e passa a viver
assombrado com o Alzheimer, com a ameaça constante de perder a
identidade, de se sentir um morto vivo, mesmo sem dor e sem ter sofrido
acidentes vascular cerebral. Manter a sua auto-suficiência é a principal
preocupação da Dona Ciça, pois ela tem consciência que “se caducar demais” será
preciso migrar do pensionato para a geriatria, que é um ambiente hospitalar,
terminal, deprimente e, por ser muito caro, dá ao velho a sensação de vir a ser
um estorvo para os filhos...é temível.
O casal de velhinhos do filme Amor, que
ultrapassaram todos estes estágios por caminhos bem mais espinhosos, com dor,
AVC e perda da identidade, encurralados pela solidão da velhice preferiram precipitar o término da jornada
existencial sem esperar pelo doloroso fim natural.
Casas Geriátricas:
pra lá vamos todos?...Eu já estou pesquisando um bom pensionato para a minha
velhice extrema, onde, sem ser estorvo para ninguém, almejo chegar
no estágio de iluminação alcançado pela minha mãe e mestra na arte de
envelhecer com lucidez, quando ela diz:
- Só me
falta uma coisa que quero ver realizada,
na verdade duas, depois posso dizer pro Papai do Céu que a hora que Ele quiser
me levar estarei pronta.
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