O ANIVERSÁRIO DA NOSSA CIDADE


           Nessa semana em que se comemorou os 241 anos da cidade de Porto Alegre, choveu informações do seu histórico em todas as mídias. Mas o detalhe que me chamou atenção é de que a Usina do Gasômetro, símbolo postal que remete aos “velhos tempos das carruagens”, foi desativada recentemente, recém agora em 1974. Desta informação sobre o “gasômetro” me veio uma dúvida: será que nós, os cinquentões, vivemos inconscientemente o funcionamento dos “lampiões de gás” inspiradores das marchinhas cantadas antigamente em nossa infância?...
         Percebi, pesquisando como um desvairado na internet, que reina uma confusão histórica entre a Usina de Gás e a Usina de Eletricidade do Gasômetro, uma vez que ambas ficavam nessa região denominada de Gasômetro, que é o meu local favorito da cidade, por sua proximidade com o pôr-do-sol.
           Algumas questões eu consegui esclarecer com o auxílio da internet. Primeiro que a Usina de Gás de Hidrogênio Carbonado, sito à Rua Washington Luiz (frente à Câmara de Vereadores, hoje utilizada pelo DEP no fabrico de tubos de cimento), foi inaugurada exatamente um século antes, em 1874. O Gasômetro destinava-se à produção de gás para a iluminação pública do centro da cidade e abastecimento de fogões, usando o gás de hidrogênio produzido nas caldeiras aquecidas por combustão de carvão.
A Usina Termelétrica do Gasômetro foi inaugurada bem depois, em 1928, produzindo energia elétrica com geradores movidos pela queima de carvão vegetal. Somente em 1937 é que foi instalada a famosa chaminé, devido às reclamações da população de antigamente contra a fuligem e cinzas lançadas pela Usina Termelétrica. Portanto, o complexo arquitetônico que cultuamos hoje recebeu esta denominação de Usina do Gasômetro devido à proximidade com a antiga Usina de Gás de Hidrogênio (O Gasômetro).
Assim, uma coisa é certa, eu fui iluminado pela energia elétrica gerada pelo Usina Termoelétrica do Gasômetro, pelo menos até a minha adolescência.

 Nós estamos muito velhos ou Porto Alegre é bastante jovem? Calculando por baixo, cerca de 25% da existência da capital conta com a minha presença no seu senso demográfico, ainda que eu não seja  filho natural e sim adotado pela cidade, como tantos outros que vieram nas levas de migrantes oriundos do êxodo rural dos “gaúchos a pé” nas décadas de 50 e 60.
A grande conclusão inevitável a se chegar é que tudo é muito recente, a cidade é uma jovem de 241 anos, e o DMAE é um adolescente, pois foi fundado  em dezembro de 1961. Calculando por regra de três, como o DMAE está completando 52 anos agora em 2013, eu que completei 35 anos de trabalho dmaeano, constato que cerca de 70% da existência da empresa contou com a minha modesta presença e contribuição. Uau!...
A propósito de antiguidades, em 1970 houve a desativação dos bondes e a Cia Carris passou a atuar como concessionária de linhas de ônibus ( isso bem antes de termos a passagem mais cara do Brasil!). Somente agora percebo que os bondes ainda circulavam pelas ruas portoalegrenses e eu andava dependurado neles, até quatro anos antes de eu começar a trabalhar na Prefeitura. Lembro que na minha velha infância, com menos de dez anos de idade, foi com os bondes que ganhei autonomia de circular sozinho pela cidade...
Mas vamos combinar que nós, os pós-cinquentões, com toda a tecnologia incorporada com mais de meio século vivido, estamos com o couro curtido da história da cidade, especialmente do seu saneamento básico. Estamos feito espécies empalhadas vivas num museu interativo de reality-show vivido por cada um, na cidade do nosso já tão longo andar ( do Quintana), andar este que estou postando aqui na internet para ser espiado como um testamento de uma geração municipária neste meu blog de final de carreira...E talvez do meu repouso....




Ao Dia Mundial da Água


O Dia Mundial da Água foi criado pela ONU (Organização das Nações Unidas) no dia 22 de março na ECO-1992, quando também divulgou um importante documento,  a “Declaração Universal dos Direitos da Água”: Art. 1º - A água faz parte do patrimônio do planeta. Cada continente, cada povo, cada nação, cada região, cada cidade, cada cidadão é plenamente responsável aos olhos de todos. Art. 2º - O direito à água é um dos direitos fundamentais do ser humano, é o direito à vida.
O Brasil concentra as maiores reservas naturais de água, detendo 13% da água do planeta. Apresenta também os mais altos índices de desperdício, cuja estimativa é que 70% da água potável seja desperdiçada (na irrigação, indústria e consumo). A meta ideal da ONU é de 20% de perdas. A projeção é de que até 2030 a falta de água deverá atingir a metade da população mundial.
Nós, trabalhadores da indústria da água potável, conscientes de que a água é um bem tão essencial à vida como o ar que respiramos, nos sentimos responsáveis pelo caráter público e social da distribuição sem fins lucrativos deste patrimônio, bem como pelo combate ao seu desperdício. Poder olhar pra trás e verificar que durante 35 anos nos dedicamos a uma causa tão nobre como a produção de água potável da nossa comunidade, é um diferencial que conforta. É claro que não resolve todas as lacunas do rol de “realizações pessoais” que idealizávamos em nossa juventude, quando por sucessivos concursos públicos adentramos nas chicanas de cargos desta fábrica de água entregue à domicílio.
 Mas o fato do DMAE cada vez mais perseguir a meta de tratar todo o esgoto antes de devolvê-lo à natureza, para não causarmos mais poluição à jusante na nossa grande fonte de captação de água que é o manancial do Guaíba, já tão mal tratado pelas cidades à montante, também agrega um sentido social e ecológico ao nosso trabalho de servidor público.
 Recuperar realmente a balneabilidade das praias de Pedra Redonda, Ipanema e Guarujá, já pensou que maravilha? Poder voltar, como nos nossos tempos de guri, a nadar novamente nestas praias, seria como podermos entregar aos nossos netos a cidade com a mesma qualidade de vida que a recebemos dos nossos pais, apesar do imenso aumento populacional! Eu não alcancei a realização desta meta na ativa, mas aposentado espero estar vivo ainda para poder comemorar esta conquista que será o verdadeiro “Dia D Glória da Água Dmaeana" dos portoalegrenses.

A Maldição da Insalubridade e das Horas-Extras

           Entre os vários tópicos monitorados pelos Grupos de Gerenciamento que já passaram pelo DMAE, há os referentes a redução de custos na área dos recursos humanos, entre os quais, sempre constam com destaque os gastos com insalubridade e horas-extras. 
          Durante os meus últimos anos na ativa acompanhei a tortura angustiante a que foi submetido o colega Jalba, por ser um aposentaNdo em 2009. Comentava-se na chamada “rádio-peão” (ou voz-do-povo),  que na melhor das hipóteses, dependendo do local de trabalho,  pela nova perícia técnica os engenheiros em geral perderiam a metade da gratificação por insalubridade. Foi uma torcida mês a mês, com o Jalba já contando como uma parcela perdida do seu salário da aposentadoria o adicional de insalubridade. E o cara (graças a Deus!) conseguiu sair faceiro,  levando tudo a que tinha direito. A maldição não se realizou!

Quando era eu o aposentaNdo da vez em 2010, todos os funcionários receberam na caixa de correio eletrônico um Comunicado da Direção Geral do DMAE, informando que estava sendo homologado o novo laudo de insalubridade, em substituição ao anterior, sob a alegação de que era muito antigo.  O comunicado argumentava aquilo que toda a torcida da dupla grenal já sabia de cor e salteado, o blá-blá-blá de que ao longo desse período ocorreram distorções no recebimento do referido adicional de insalubridade, cuja concessão se fundamentaria na “habitualidade do exercício da atividade insalubre”. “Inocentemente”  o comunicado, assinado pelo Diretor Geral, concluía  que ia ser  implantado o novo laudo visando corrigir as referidas distorções, para o bem de todos e a felicidade geral da nação dmaeana.
Sentia-me, na época, como o esquilo da abertura do filme Era do Gelo, tentando comer a suculenta noz gigante que sempre lhe escapava... Como uma maldição. Foi uma expectativa angustiante mês a mês, mas eu (graças a Deus!) também consegui sair faceiro,  levando tudo a que tinha direito. A maldição novamente não se realizou!
A cada novo governo municipal eleito, a nova administração ressuscita este assunto, contrata uma nova perícia que produz um novo laudo, mas que, na hora de implantar, recua diante da reação desesperada dos funcionários que encaram a medida como uma perversa redução salarial...e os aposentaNdos é que ficam arrancando os cabelos que já estão poucos e brancos.
 Outra questão sempre ressuscitada, em cada nova administração, é a dificuldade de se estabelecer metas de redução das horas-extras no DMAE, como o que está ocorrendo agora pela enésima vez... Diante do zum-zum-zum de que começaram a fazer um corte geral, não posso perder a  oportunidade de relatar a minha experiência traumática com este tema amaldiçoada das horas-extras:
          Quando assumi a Direção da Manutenção, que tinha 150 funcionários em 1997, busquei implementar várias ferramentas dos compêndios de “Gestão de Qualidade”, tais como indicadores com metas gerenciais, check-lists de manutenção, procedimentos operacionais padronizados (POPs) e valorização do enfoque preventivo da manutenção de equipamentos, visando minimizar ao máximo a necessidade de intervenções corretivas. Praticamente tudo isso que agora, quinze anos depois, está finalmente se espraiando em todo o Departamento.
            
             Na época alcançamos a meta de redução de horas extras em 20%, mas esta realização custou o meu pescoço: fui defenestrado do cargo de diretor da Manutenção, com pouco mais de dois anos na função (ainda bem que com o tempo suficiente para incorporar a função gratificada ao salário!). A degola foi executada por uma nova Direção Geral tampão ( que entrou substituindo o Dieter que foi assumir a Corsan com a conquista do Governo do Estado pelo Olívio Dutra), ocasião em que, pela primeira vez na história deste Departamento, o Dmae era assumido por um grupo de alienígenas, por militantes partidários vindos em bando de fora do seu quadro funcional. Politicamente a nova Direção Geral aproveitou o descontentamento funcional provocado pela política de redução em 20% das horas-extras para abrir espaço em cargos gerenciais para empregar os seus membros trazidos do DMLU. Assim, guardadas as proporções, feito os líderes da Revolução Francesa, eu fui levado à guilhotina pelo mesmo movimento sindical que eu próprio havia sido um pioneiro na sua criação dentro da DVM, do DMAE e da Prefeitura como um todo.
Aprendi na carne, a duro custo do esfacelamento das minhas ilusões, que na política não basta  querer fazer acontecer “um mundo melhor”, tem que se estar no lugar certo, na hora-certa e do lado certo em que a história vai se realizar. É a fenomenologia da dialética hegeliana, pois de boa intenção o inferno está cheio.
         Agora, na esteira do terceiro mandato de uma mesma gestão no DMAE, o continuísmo no poder se torna mais uma vez perverso com os servidores públicos municipais, ao estabelecer metas de redução  bem mais audaciosas e radicais, implantando a lei seca e a tolerância zero para a realização de serviços extraordinários. Ouçam a voz da experiência: por bem menos que isso cabeças já rolaram, é a maldição das horas-extras!... 

De Žižek à Hugo Chaves e aos Coletivos Urbanos


Acabaram de me informar que o Hugo Chávez morreu. Vou iniciar minha conferência aqui em Porto Alegre dizendo que: Hugo Chávez era um dos nossos! Assim falou Žižek, o atual filósofo pop-star da esquerda mundial (uma espécie de novo Sartre), na abertura de sua palestra com o sugestivo título: De Hegel à Marx e de volta à Hegel.
Slavoj Žižek é um tipo esquisito, como o seu próprio nome, com acento na letra z, é cheio de tiques gesticulares e fala como uma metralhadora atirando pra tudo quanto é lado. Nascido na capital da hoje Eslovênia (ex-país comunista do leste europeu), doutorou-se em Filosofia e estudou Psicanálise na Universidade de Paris. Žižek é conhecido por seu uso de Jacques Lacan numa nova leitura da cultura popular, e tópicos como o leninismo,  fundamentalismo e tolerância, o politicamente correto e outros.
É sabido que Marx era um seguidor filosófico de Hegel, e que derivou do mestre achando que o filósofo tem que agir politicamente para transformar o mundo, e não apenas buscar entendê-lo e explicá-lo. Deu no que deu, no violento sistema stalinista. Žižek vivia no olho do furacão comunista quando ele implodiu, mas ainda acredita na utopia marxista, apenas recomendando que se retorne de Marx à Hegel, pra estudar o que faltou no projeto leninista de  socialismo que acabou descambando para a violência.
 Neste vazio de  projeto pós-moderno para aglutinação dos esquerdistas do mundo, Hugo Chávez achou nos ideais utópicos do General Bolívar, que lutou por uma América unificada e libertada do colonialismo estrangeiro, a bandeira de luta para promover a sua Revolução  Bolivarista da população indígena da Venezuela. Revolução esta que se propagou pela vizinha Bolívia, com o indígena Evo Morales. No grito e no joelhaço, contra o democratismo das elites dominantes, Chávez conseguiu socializar a riqueza do petróleo venezuelano, transformando o país no menos desigual em distribuição de renda na América Latina, conforme a ONU. A Unesco declarou a Venezuela  um país livre do analfabetismo. A truculenta revolução bolivarista de Chávez reduziu a pobreza em 50%, e a pobreza extrema se reduziu de 29% para 7%.

 Juremir Machado, em várias colunas antigas sobre o chavismo e os agourentos da morte de Chávez, destacou que mesmo sendo um recordista de ganhar eleições, o cara é criticado e condenado como um ditador, especialmente por ter cometido o pecado mortal de realizar uma reforma agrária, com distribuição de terras aos camponeses, e ter reduzido a carga de trabalho de 44 para 36 horas semanais. Agora o jornalista voltou à carga comparando a semelhança entre Venezuela com o Brasil, onde para as elites qualquer política pública que privilegie os miseráveis é rotulada de populista. Funcionou contra Getúlio e Jango, mas já não colou no Lula. Populismo foi um conceito inventado pela direita como álibi para não se tocar nos interesses dos ricos.  
Chaves foi além, realizou até o sonho de muitos dos seus críticos no Brasil: extinguiu o senado e fixou em, no máximo, três os mandatos permitidos para  deputados. Poucos governantes foram alvos de campanhas de demolição tão odiosas como o ex-presidente da Venezuela, assim como poucos foram tão idolatrados pela sua tribo, literalmente. Chávez, que adorava instigar a ira imperialista dos ianques “donos do mundo”, fez jus à uma emblemática manchete de um jornal norte-americano: Morreu um provocador!
Slavoj Žižek reconhece que o sistema capitalista é universal, funciona bem com qualquer religião ou regime político, como paradoxalmente até na China, país que está demonstrando ser o comunismo o melhor administrador do novo capitalismo. O cara afirma que não estamos vivendo uma crise global, que esta é uma crise estritamente local e européia. Diz que a Europa está perdendo sua função de modelo, o que não é um fenômeno para se comemorar, pois o que está surgindo em lugar do capitalismo europeu é o asiático, um capitalismo mais autoritário.
 Até aqui eu estava concordando em gênero e grau com o filósofo marxista. Mas como ele é um notório polemista, eu estava até achando tudo politicamente correto demais, até ele afirmar que devemos nos livrar dos mitos da democracia direta. Contou que  acompanhou o movimento Ocupa Wall Street, e verificou que as propostas eram totalmente confusas. Por haver revolta não significa que irá aparecer alguma opção séria, e o problema é quando a esquerda não tem projeto que seja aceito pelas pessoas do movimento. Como exemplo, citou o fato de os partidos islâmicos terem tomado conta do Egito na esteira revolucionária da Primavera Árabe.
 O problema é como mudar a vida real depois do êxtase revolucionário, quando tudo volta ao normal. Conclui dizendo que não gosta desta idéia esquerdista de que precisamos de democracia participativa, na qual estaremos todos engajados. A maioria de nós, na qual se inclui, não quer participar o tempo todo de política, quer um Estado eficiente que lhe permita viver em paz. Considera o Brasil  um bom exemplo daquilo que, com uma política inteligente, se pode fazer dentro das coordenadas do capitalismo global.
Pessoalmente, enquanto um esquerdista humanista não marxista, já fui mais encantado com a democracia direta, a partir da experiência do orçamento participativo portoalegrense e do Fórum Social Mundial. Porém, tem bagulho bom aí! O principal fato político da eleição municipal de 2012 foi o episódio surreal das cenas de violência despropositada das forças de repressão contra os jovens que protestavam mobilizados pelo movimento “Defesa Pública da Alegria” no entorno do boneco inflável “Tatu Bola da Copa-Cola”, símbolo da copa do mundo de futebol.  O protesto diante do mascote da discórdia reunia músicos, artistas plásticos e de teatro, e ativistas políticos dos grupos chamados de Coletivos Urbanos, como o Levante da Juventude, Bloco de Laje, Cidade Baixa Livre, Catarse, Comitê Latino Americano, Punks do Coletivo Galera do Bosque, Raiz Urbana e RUA (Rastros Urbanos de Amor).
 Os movimentos sociais, de tanto serem atropelados, como os ciclistas da Massa Crítica, estão passando à frente dos partidos políticos e, PEDALANDO PELADOS, estão partindo pra fazer a democracia direta com as próprias mãos em Coletivos Urbanos que se multiplicam em metrópoles  como São Paulo, Rio,  Florianópolis e Porto Alegre.

 Contudo, nisso eu discordo do Žižek.  Hoje , como dizia o Gonzaguinha, “eu acredito é na rapaziada, que vai em frente e segura o rojão. Eu levo fé é na fé da moçada” dos Coletivos Urbanos, que em vez de protestos promovem intervenções criativas na cidade. Sem vinculações com partidos políticos nem palavras de ordem surradas, estão formando as bases do ativismo cidadão do século 21, articulados em redes tecnológicas e voluntariados em estruturas anárquicas de democracia direta. Os Coletivos Urbanos equivalem ao retornar de Marx à Hegel, ou seja, de fazermos no próprio movimento, aqui e agora, a prática dialética do futuro idealizado.



CASAS GERIÁTRICAS: PRA LÁ VAMOS TODOS?

           Antes da premiação do Oscar 2013 eu havia assistido a quatro filmes indicados: acertei vendo o Lincoln e Os Miseráveis que ganharam respectivamente o Oscar de melhor ator e de  melhor atriz coadjuvante. Mas, se errei feio escolhendo o filme Indomável Sonhadora que não levou prêmio nenhum, e errei optando por não assistir Argo, eleito como o melhor de todos, pelo menos acertei em cheio assistindo ao filme Amor, escolhido como o melhor filme estrangeiro em Hollywood.
Amor já  havia ganho todos os prêmios na França, ganhou o César 2013 (espécie de Oscar francês) para melhor filme, ator e atriz; e a Palma de Ouro como melhor filme do charmoso Festival de Cannes. Amor mostra a decrepitude da vida na velhice, etapa da existência mais sujeita a acidentes vasculares cerebrais (AVC), os quais podem ocorrer com qualquer um, acontecem nas melhores famílias, inclusive nas nossas.
Entrar nos “sessenta” inteiro, sem medicações de uso continuo, é um rito de passagem que se tornou benéfico, só trás vantagens legais. Embora eu recém em 2014 estarei entrando no jardim de infância da terceiridade, quando me tornarei um “modernoso sessentão” do terceiro milênio, já estou fazendo intensivo aprendizado em geriatria, tipo residência médica, com  a minha mãe que está completando 90 anos. Mesmo sem nenhum AVC, mesmo saudável, como quase todo mundo depois dos oitenta, ela já vive as agruras do final de carreira, as quais estou acompanhando e prestando bastante atenção,  e tentando amenizar no que for possível. Estou ligado neste tema por saber que a “barreira dos oitenta” é o próximo grande rito de passagem na vida de um aposentado, depois da qual já estamos no lucro ou no prejuízo, pagando as multas pelos excessos cometidos nas fases anteriores.
Até os 85 anos a Dona Ciça mantinha a sua casa morando sozinha e sendo o centro de convergência dos filhos, netos e bisnetos dispersos pelo mundo. Até que tonturas e vertigens breves incutiram o medo de ela ficar sozinha no apartamento durante as noites, depois lapsos eventuais de esquecimentos de panelas no fogão com o fogo aceso foram minando a segurança da  viúva matriarca. Seguiu-se o estágio da busca de uma companhia, inicialmente noturna, depois para dia e noite; uma pessoa que ajudasse nas tarefas domésticas e, sobretudo, que se harmonizasse com a dona da casa... Feitas as experiências, vieram as decepções que são naturais e até logicamente previsíveis: não funciona  nem intrusos na casa do idoso, nem com o idoso de intruso na casa dos outros.....
 Então, Dona Ciça tirou da manga e jogou na mesa uma carta que tinha guardada: Quero ir morar num pensionato de idosas!  Os filhos se surpreendem, confundiam pensionato com geriatria, achavam um destino deprimente, ficaram contrários. Ninguém quer abrir mão da rotina de correr pra casa da mamãe, vovó ou bisa, quando bem entender, e ser bem atendido com mesa e cama... Tudo bem, assimilado o golpe, saímos a pesquisar na cidade para vermos se existem opções interessantes e sustentáveis que ofereçam casa, comida e companhia para a nossa viúva matriarca. Dona Ciça que começava a reconhecer que não tem mais forças para manter o clã como sendo anfitriã, que precisa passar a ser hóspede eventual de seus descendentes e ser servida de mesa e cama.
 Mais uma vez ela tinha razão. Visitamos várias casas, desde geriatrias e pensionatos até depósitos de velhinhos. Encontramos o que procurávamos no Pensionato Bom Pastor. No pensionato a Dona Ciça passou a viver como num apart-hotel, tem o seu espaço  privado com suas coisas, montou sua casa num cômodo amplo, e compartilha com outras idosas as áreas comuns e as refeições. Livre das tarefas domésticas de fazer compras, estocar alimentos, cozinhar e fazer faxinas, finalmente quem sempre serviu passou a ser servida.
Contudo, uma frase da Dona Ciça, que é uma boa frasista (sem nunca ter entrado numa escola, sabe ler e escrever com letra melhor do que a minha), me chamou atenção para a perda de autonomia dos velhos, que é o tema do filme Amor:
-Me tiraram o fogo, não cozinho mais nada. Só me restou aprender a aquecer no tal de microondas a comida que fazem para mim. 
Perder o domínio do fogo é bastante simbólico para uma ex-cozinheira de restaurante. Assim como a surdez que  vai  fazendo com que ela não consiga mais acompanhar direito as tramas das telenovelas (nem as conversas em volta), também é emblemática a catarata que vai lhe roubando a visão e limitando a sua capacidade de fazer crochê e de ler o jornal diariamente, suas ocupações prediletas. Há de envelhecer-se, mas sem perder a autonomia, pois pensionato não tem serviço de enfermagem, exige a auto-suficiência dos seus inquilinos para os cuidados pessoais, inclusive de medicações.
Aos poucos o idoso vai se isolando e passa a viver  assombrado com o Alzheimer, com a ameaça constante de perder a identidade, de se sentir um morto vivo, mesmo sem dor e sem ter sofrido acidentes vascular cerebral. Manter a sua auto-suficiência é a principal preocupação da Dona Ciça, pois ela tem consciência que “se caducar demais” será preciso migrar do pensionato para a geriatria, que é um ambiente hospitalar, terminal, deprimente e, por ser muito caro, dá ao velho a sensação de vir a ser um estorvo para os filhos...é temível.
 O casal de velhinhos do filme Amor, que ultrapassaram todos estes estágios por caminhos bem mais espinhosos, com dor, AVC e perda da identidade, encurralados pela solidão da velhice  preferiram precipitar o término da jornada existencial sem esperar pelo doloroso fim natural.

Casas Geriátricas: pra lá vamos todos?...Eu já estou pesquisando um bom pensionato para a minha velhice extrema, onde, sem ser estorvo para ninguém,  almejo chegar  no estágio de iluminação alcançado pela minha mãe e mestra na arte de envelhecer com lucidez, quando ela diz:
- Só me falta uma coisa que quero ver  realizada, na verdade duas, depois posso dizer pro Papai do Céu que a hora que Ele quiser me levar estarei pronta.