ODISSÉIA COTIDIANA

           Este texto é o diário de um dia, um Bloomsday meu. O “Bloomsday” é um feriado comemorado na Irlanda em homenagem ao livro Ulisses, de James Joyce (o mestre em escrever “fluxos de pensamentos”). É o único feriado em todo o mundo dedicado a um livro literário, obra que relata em cerca de mil páginas o que ocorre em apenas um dia na “Odisséia Cotidiana” da vida comum e nada heróica de um Ulisses na homérica modernidade.
          Este texto é um exercício literário joyceano, em que tento registrar minha Odisséia Cotidiana, do que andei fazendo e pensando (com fluxos de pensamentos) num único dia de aposentado, que será publicado aqui no blog em cinco postagens: A Manhã, O Meio Dia, A Tarde, O Entardecer e A Noite.

Odisséia Cotidiana: A Manhã
         São oito horas, tomo café da manhã com leite e nescafé, como pão dormido. Guardo as compras de ontem trazidas em sacolas plásticas do supermercado. Penso: As sacolas estão sendo racionalizadas para um uso consciente: as sacolas servem em reuso para ensacar seletivamente os lixos domésticos: a coleta seletiva possibilita a destinação correta dos dejetos para seus respectivos destinos finais: para a reciclagem ou para o aterro sanitário. Fazer a triagem do lixo é uma postura politicamente correta do cidadão, sujeito que faz a sua parte, mesmo sabendo que o percentual de reciclagem sempre será ínfimo e nunca vai resolver o problema da poluição do planeta e da degradação das condições de vida para as próximas gerações. Seguimos em nossa odisséia diária velejando sem leme rumo ao suicídio coletivo da espécie, e seguimos para o Apocalipse sem parar de mamar por um momento o leite longa vida das tetas de tetra-pack (com uma camada de alumínio).
         Lixo eletrônico: anteontem pifou o meu aparelho de DVD-Player, trancou com o filme “A Doce Vida” de Federico Fellini dentro do equipamento. Ainda bem que a pane foi depois de eu assistir ao clássico filme em preto e branco: estou preenchendo as lacunas deixadas pela pobreza na minha formação cultural. É sempre assim, dizem, desgraça nunca vem sozinha: ontem foi a vez do aparelho de TV da cozinha se apagar de vez, morte súbita. Tudo tem  uma vida útil limitada, mas antes de desovarmos nossos velhos queridos como sucatas, temos que consultar o diagnóstico dos especialistas. Velhice não é o fim, mas começa a dar defeito com mais freqüência por estarmos cada vez mais próximos do vencimento da nossa vida útil: e pra lá vamos!
No espelho embaciado do banheiro me vejo dando banho no meu corpo e não me reconheço nele: nem no corpo nem no espelho: ele é meu corpo, mas eu não sou ele. O corpo humano é uma máquina muito bem bolada,  porém também sujeita à manutenção e concertos e à desova como lixo orgânico em cerimoniais metafísicos quando termina a sua vida útil. Retiro do ralo do box do chuveiro  os cabelos caídos que já fazem falta na cabeça: corto feito um gramado os cabelos do rosto com barbeador: aparo com uma tesourinha os cabelos das orelhas e das narinas, que são como aranhas saindo das tocas. Envolvo aquele corpo do espelho, com suas regiões de flacidez e rugosidades em excesso, em roupagens socialmente disfarçáveis, feito uma barata kafkiana  metamorfoseada em humano,  para podermos sair pelas ruas sabendo o óbvio ululante: que toda a nudez será castigada com a velhice.
Sentei  diante do computador e, enquanto se processa sua lenta inicialização após ligado, fui revisando os assuntos pendentes espalhados em inúmeros  bilhetes sobre a mesa: escrever texto para o blog Diário de Um Aposentando sobre... postar tal poema no blog Brechó de Poemas, digitar os textos antigos que ainda estão manuscritos, reeditar crônicas aproveitáveis para divulgação online, aprontar o blog de Resenhas  & Resumos & Sinopses, editar a versão impressa do livro de poemas do recém encerrado blog ELOS...Acessar o Facebook  e atualizar o meu mural com uma matéria do Paulo Coelho reduzindo o Ulisses a um tuíte...Cruzes, quantos emails: preciso dedicar mais tempo para ler meu correio eletrônico!...Estudar as Cinco Sabedorias Budistas contidas no mantra “Om ah hum benza guru pema sidhi hum”...Fazer matrícula na UFRGS em Teoria da Literatura...Pronto, ufa!, o Windows finalmente concluiu sua inicialização me dando boas vindas: posso simplesmente abrir um novo arquivo de Word e digitar este texto precisamente sobre este momento deste meu dia de Ulisses, deixando todas as pendências continuarem pendentes e se avolumando com mais esta que possivelmente também não resultará concluída tão cedo.
Como recomendava Hegel, uma pessoa tem que ler um jornal diariamente. Nada melhor para cumprir este ritual intelectual do que agregar a  ele um rito tribal: ler jornal tomando chimarrão. Desci até a entrada do prédio e peguei o jornal na caixa de correspondência, subi e fiz o mate: me parei a matear lendo as notícias. Não existe um jornal bom no país, logo não estou satisfeito com o jornal que leio todos os dias, especialmente depois que ficou vinculado à Rede Record da Igreja Universal (do Bispo Macedo!). O Correio do Povo só tem de bom mesmo  o seu formato enxuto de tablóide  com notícias curtas e dois colunistas, um colunista diário e local, que é o Juremir Machado, e o Elio Gaspari, que é um colunista semanal  de fora do estado. Minha caixa de correspondência do condomínio não comporta uma edição por assinatura da ZH, procuro ler apenas seus cadernos especiais. O jornal O Sul surgiu como uma esperança de fazer um meio termo na aldeia, mas são muitos colunistas inexpressivos e muitas fotos pra pouco texto. No final, de qualquer jornal não fica nada senão a certeza de que a loucura geral continua se agravando, mas na boca fica o amargo prazeroso da erva mate nos  aquecendo culturalmente por dentro. A manhã de um aposentado passa voando!...

4 comentários:

  1. Adorei o texto. Sempre que posso leio o diário de um aposentado (sabendo que um dia...talvez... eu tenha a mesma oportunidade de aposentadoria). Esta mesma que o governo a cada dia me castra um pedacinho (mesmo que eu tenha começado a trabalhar aos 14 anos com a frase inesquecível da minha mãe "trabalhe desde cedo para a posentar novo").
    Mas falando sobre a "Odisséia Ulissiana", todos nós temos de fazer nossa parte para aumentar nossa vida aqui neste planeta e reciclagem é a solução sim. por mais consumistas que somos temos de nos policiar... É difícil para todos, mas acredito e tento fazer o melhor em tudo.
    Abç, Daniel Câmara

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  2. Nosso ulisses gaudério, diante de um cotidiano que implica em ser desfavorável e insiste em nos distanciar do Nirvana, o estado de iluminação, e não a turma do Kurt Cobaim...(rs)
    Bom texto, mostrando que das pequenas coisas do dia-a-dia, tb. se constrói uma crônica.

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  3. Nos meus dias de Ulisses, gauchita a pé, por esses pagos de cá, me reconforto no calorzito amargo de um mate. O mate ajudando os Ulisses do sul da américa em suas pequenas odisseias.

    Experiencia literária interessante, pai.

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  4. Tinha ouvido falar vagamente do "Ulisses" de James Joyce; me parecia que é uma literatura enfadonha e muito intragável; mas se neste teu laboratório a maneira Joiciana utilizaste a mesma técnica, de contar, detalhadamente, tudo o que se passa em pequeno espaço de tempo, acho que passei a gostar de Joyce sem o ter lido, me despertou a curiosidade de lê-lo...através do teu texto. Celso, gostei muito, agradecido, parabéns!
    Milton Caselani. 18 set 2012.

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