Foi preciso esperar que morressem Jango (+1976) e Brizola (+2004), para que pudéssemos começar a tratar dos acontecimentos históricos da Campanha da Legalidade, sem a viseira estreita das facciosas propagandas partidárias. Pense bem, como é que os figurões dos outros partidos políticos iriam reconhecer as façanhas do fundador de um partido concorrente? Reconhecer que o Brizola deve ocupar um lugar destacado na galeria dos heróis gaúchos, quiçá nacional, seria como “se entregá pros home de mão beijada”, pensam os caciques partidários.
Agora, tanto faz, pois Brizola não deixou sucessores políticos de vulto para usufruírem de suas glórias de tardias condecorações. O importante é que estamos resgatando esta figura lendária, cujo espírito gaudério, mesmo ameaçado pelo cerco do exército, não se deixou silenciar. Pelo contrário, botou a boca no microfone da Rádio Guaíba que foi instalada nos porões do palácio: "Ninguém dará o golpe por telefone. O Rio Grande não aceita o golpe e a ele não se submeterá".
Brizola, por sua atuação na Campanha da Legalidade se consagrou como um grande líder gaúcho de massas, ao conseguir mobilizar o seu povo para uma luta que parecia quase suicida, fazendo com que a população se dispusesse voluntariamente a lutar e morrer pela Legalidade Constitucional, ou seja, para que assumisse a presidência do país o Vice-presidente Jango, após a renúncia já com intenções golpistas do maluco Jânio Quadros.
O legal da Legalidade são as emoções próprias da metade do século passado, no auge da guerra-fria, quando as pessoas ainda eram capazes de matar e morrer por ideias e ideologias. Eram tempos conturbados aqueles. Getúlio Vargas teria se suicidado em 1954 para impedir o golpe das forças reacionárias da UDN (União Democrática Nacional), que foi um partido político brasileiro liderado pelo Carlos Lacerda – O Corvo. Está tudo na Wikipédia: A UDN tentou impugnar o resultado da eleição de Juscelino Kubstchek, sob a alegação de que Juscelino não obteve vitória por maioria absoluta dos votos (obteve 36% em turno único entre vários candidatos). A posse de Juscelino e do vice-presidente eleito João Goulart só foi garantida com um levante militar, em 1955, que depôs o então presidente interino da República Carlos Luz da UDN (Café Filho, que havia assumido a presidência após o suicídio de Vargas tinha sofrido enfarte e estava afastado da presidência). Assumiu a presidência o presidente do Senado Federal, Nereu Ramos, do partido de JK. O Brasil permaneceu em estado de sítio até a posse de JK em 31 de janeiro de 1956. É, caros leitores, as transições de governo eram traumáticas naqueles tempos!
O legal da Legalidade, que agora foi instituída como uma data oficial no calendário das comemorações cívicas e escolares de eventos do governo estadual gaúcho, é que o episódio nos reporta ao estudo e discussão do engendramento histórico da ditadura militar e de suas nefastas conseqüências posteriores na vida do povo brasileiro. Foram duas décadas (1964-1985) feitas de anos de chumbo, páginas que não podem ser esquecidas pelas novas gerações.
Por exemplo, podemos pesquisar sobre a trajetória pessoal do João Belchior Goulart, que não é o cantor Belchior, mas o político mais conhecido como Jango, que foi ministro do trabalho de Getúlio Vargas. Jango, depois de ter sido vice do Juscelino (na ocasião obteve mais votos que o presidente eleito, pois as votações para presidente e vice eram separadas – que loucura!), foi reeleito como vice, desta vez do doido Jânio “da vassoura” para varrer os corruptos, uma espécie de Collor da época caçando marajás. Como vemos, o Jango era bom de voto, tinha cacife para ser o próximo presidente nas urnas.
Mas não foi necessário. Jânio Quadros, numa manobra política esquizofrênica, surpreende a nação pedindo demissão do cargo, justo quando havia enviado seu vice Jango para visitar a China, lá no outro lado do mundo. Foi a deixa para as forças reacionárias golpistas saltarem que nem abutres na carniça da cadeira vaga do presidente, articulados mais uma vez pelo corvo Carlos Lacerda (que queria ser presidente a qualquer custo, mas também acabou cassado pela ditadura: bem feito!).
Também é legal na Legalidade o clima de tensão e suspense em que se sucedem os acontecimentos. O governo golpista dos militares chegou a programar um ataque com aviões ao Palácio Piratini. A ordem era para matar o Brizola e todos os que estivessem com ele. No entanto, o ataque foi cinematograficamente sabotado pelo próprio pessoal de controle das forças armadas, com o III° Exército aderindo à Legalidade. Ainda não foi desta vez, pois o golpe militar articulado não contava com a resistência astuta levantada nas barricadas gaúchas pelo então governador Leonel de Moura Brizola. O avanço das baionetas do autoritarismo da ditadura militar foram adiadas por mais três anos, pois os milicos tiveram que engolir e bater continência para a Campanha da Legalidade que empossou na marra, pela força do direito, o “esquerdista” João Goulart do PTB como presidente do Brasil.
Outro momento legal da legalidade é quando, finalmente em solo gaúcho, conduzido pela mão do Brizola para obter sua louvação, o Jango vai até a sacada do Palácio Piratini, onde o povo fazia vigília noite e dia, e não faz nenhum pronunciamento, apenas abana para a multidão em delírio. Os arranjos de cúpula para admitirem a sua posse e abortarem o golpe já tinham enviado na véspera o Tancredo Neves ao Uruguai, para selar o acordo de uma saída honrosa sem derramamento de sangue: Jango assumiria de boca calada e sob o regime parlamentarista! Jango havia prometido que não ia colocar mais lenha no fogo revolucionário do Brizola, que exigia o cumprimento da Legalidade sem negociações.
Uma coisa legal da Legalidade é que, apesar do Jango ter tomado posse amordaçado pela emenda parlamentarista, ele conseguiu soltar esta mordaça revogando o parlamentarismo através de um plebiscito em 1963, que restituiu o presidencialismo no país. Empolgado, em março de 1964, data da realização de comício em frente à Estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, perante trezentas mil pessoas, Jango decreta a nacionalização das refinarias privadas de petróleo e a desapropriação de terras para a reforma agrária. Os conservadores fizeram parecer que ele era o bicho-papão comunista mostrando em suas garras a foice e o martelo. A oposição militar veio à tona para impedir que tais reformas se consolidassem, impondo finalmente o golpe militar, desta vez bem articulados com os políticos reacionários (Lacerda, Sarney, etc.) e sem possibilidade de mobilização das camadas populares da sociedade para uma reação nos moldes da Campanha da Legalidade em âmbito nacional.
O mais legal da Legalidade é a figura jovem do governador Brizola com uma metralhadora dependurada no ombro e comandando as massas com sua voz sentida, saída do fundo dos porões e transmitida pela rede social das ondas de rádio, direto para os corações e mentes dos seus compatriotas. Belos tempos idealistas aqueles!
- Valeu Velho Briza!
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