OS APOSENTADOS PRÉ-DIGITAIS & OS PÓS-MODERNOS

É impressionante o grau de limitação que ficam as pessoas que vivem excluídas da Internet, há um divisor de águas profundo entre os antigos e os novos aposentados, que é o fosso da exclusão digital do ciberespaço. Só agora compreendo o real sentido do medo da aposentadoria que têm os filhos da minha geração e adjacências, posto que antes do advento da globalização “www” realmente só restava a televisão e o  sofá da sala, o Windows era literalmente a janela pra rua restrita da aldeia onde se vivia. 
Tenho assessorado a minha mãe, com 90 anos, que mesmo estando bem lúcida,  está completamente excluída  de exercer as triviais atividades de receber seu salário de aposentada e de pagar suas próprias contas nos terminais de auto-atendimento. Nem simplesmente sacar o seu dinheiro ela pode, diante daquelas telas pedindo senhas de números, de  letras e de sílabas que ficam trocando de lugar para te confundir mais do que aos ladrões.... Precisa que alguém faça estas rotinas por ela, por ser uma deficiente digital!

 E pensar que a maioria da população ainda desconhece que se pode produzir blogs pessoais, não sabe que se pode assistir aos vídeos que se quiser no Youtube e, a mais sacana das injustiças, não sabe o que é dispor do maior oráculo de todos os tempos para responder às suas dúvidas através da enciclopédia universal que é o Google... Desde então, eu que felizmente me apropriei minimamente destas ferramentas digitais, passei a ter uma compreensão mais contextualizada do porquê o “tempo ocioso” da aposentadoria é tão temido pelo pessoal da era pré-digital, justamente esta geração que está se aposentando atualmente. Só agora compreendo melhor este temor, pois reconheço que o tempo ocioso da era glacial da informação poderia ser muito longo e tedioso.
Quando morreu Steve Jobs em 2011, o grande criador de produtos elitizados de consumo, como o  Ipod (música), Ipad (tablets - ebooks), Iphone (celular) e dos renomados computadores Macintosh (produtos aos quais eu nunca tive acesso!), entendi que o cara  foi tão criativo que acabou determinando as tendências mundiais  da interação dos humanos com as maquininhas interligadas em redes sem fio. A propósito, tem um filme intitulado “Piratas do Vale do Silício” (disponível no Youtube) que oferece uma versão dramatizada do nascimento da era da informática, desde o primeiro PC, através da histórica rivalidade entre a Apple (depois Macintosh) e a Microsoft do Bill Gates, esclarecendo quem pirateou o quê de quem. No filme Steve Jobs é um garoto hippie e contestador, que vai a passeatas na universidade, toma LSD e tem inspirações messiânicas.
Pessoalmente me identifico muito com este segmento yuppie  da minha geração, nascida na década de 1950, pessoal emergente do movimento hippie que descobriu o poder criativo contido nos circuitos eletrônicos, capaz de democratizar a informação. Na década de 70 eu também surfei nesta onda. Até fiz o curso de técnico em eletrônica da Escola Parobé, e frequentei muito as lojas de vendas de componentes eletrônicos que proliferavam na Av. Alberto Bins, onde circulavam todos os “nerds” e revistas “faça você mesmo” sobre circuitos eletrônicos e amplificadores daquela época.


Agora, mesmo após a morte do Steve Jobs, nas novas tecnologias eu vou pegando meio no tranco. Lembro que eu fazia discursos contra a onda do uso de telefones celulares, quando ela  se espalhou como um tsunami, e resisti o quanto pude em ter minha vida monitorada o tempo todo por este aparelho...até ser fisgado por esta nova necessidade de consumo tornada indispensável. Então migramos todos do nostálgico “discar para alguém” dos telefones de disco para o moderno “teclar”.
 Entretanto, como demonstram todas as maquininhas deixadas pelo mago Steve Jobs, nas tecnologias pós-modernas as teclas já foram abolidas. Ele profetizou que não íamos mais “teclar para alguém”, tudo aconteceria em telas sensíveis ao toque (touch screen): Enviaríamos toques! Novamente resisti o quanto pude, continuo lendo jornais e livros de papel e não em e-books, e muito menos em tablets sem teclas, mas...
Conservador, eu? Não, sou apenas um velho pirata lerdo que somente agora aderiu ao smartphone com processador Android e touch screen... Vou ter que começar a surfar na onda de baixar aplicativos na internet móvel do meu celular, não podemos ficar pra trás que o processo de exclusão digital é permanente. Os aposentados pós-modernos têm, portanto, dois mundos para povoar: o ciberespaço da vida virtual (agora portável no bolso) e o espaço mundano da vida real. Acreditem, falta tempo!

GAUCHISMO, FOLCLORE & CANÇÕES

          “Me perguntaram se eu sou gaúcho, está na cara repare o meu jeito...Me chamam de grosso, não tiro a razão, eu reconheço a minha grossura”... Sou gaúcho a pé, filho do êxodo rural da segunda metade do século passado, quando os interioranos pobres vinham encantados pelas luzes da cidade. Hoje, apertados em apartamentos, vivemos de reinventar uma memória heróica em simulacros de piquetes, CTGs e acampamentos farroupilhas, transformados em uma seita ideológica do gauchismo promovido à folclórica atração cultural em carnavalescos desfiles.
O historiador e folclorista Barbosa Lessa é um caso típico do fenômeno da canção popular criando o folclore. Lessa compôs canções a partir de pesquisas, com o propósito de caracterizar a cultura do gauchismo e fundar o Centro de Tradição Gaúcho, junto com o Paíxão Cortes (a estátua ainda viva do Laçador), e nos CTGs consagrar o que hoje são as nossas cantorias e danças típicas: Negrinho do Pastoreio, Quero-quero, Rancheira de Carreirinha, Balaio, Pezinho.
 Também o Lupicínio, o “sambista de bombachas”, conseguiu emplacar pelo menos duas no folclore: Felicidade (O pensamento parece uma coisa à toa/ Mas como é que a  gente voa / Quando começa a pensar...) e Cevando o Amargo (Amigo boleie a perna, puxe o banco e vá sentando / Encoste a palha na orelha / E o criolo vá picando / Enquanto a chaleira chia / O amargo eu vou cevando / Foi bom você ter chegado / Eu tinha que lhe falar / Um gaúcho apaixonado / Precisa desabafar / Chinoca fugiu de casa / Com meu amigo João / Bem diz que mulher tem asa / Na ponta do coração.)
Mas afinal, o que é folclore? O folclore é a tradição e usos populares, constituído pelos costumes e tradições, transmitidos de geração em geração. Dorival Caymmi é um exemplo de artista tipicamente associado ao folclore, é um cancionista das tradições, crenças e superstições baianas. Caymmi fez  música praieira da Bahia, caracterizando a figura marítima dos pescadores, o que colaborou para fixar uma imagem do Brasil para o exterior e para os próprios brasileiros, com referências à cultura baiana com suas comidas, danças e religiosidades.
 Então, assim como Barbosa Lessa, Lupicínio e Caymmi, muitos outros cancionistas populares criaram canções que já se tornaram parte do folclore brasileiro, tais como: Carinhoso de Pixiguinha,  Com Que Roupa e Feitiço da Vila de Noel Rosa, Aquarela do Brasil e Isto Aqui o que é? de Ary Barroso, As Rosas Não Falam de Cartola, Asa Branca e O Xote das Meninas de Luiz Gonzaga, Saudosa Maloca e Trem das Onze de Adoniram Barbosa...

A questão agora é saber quantas e quais canções dos nossos ídolos recentes passarão como do folclore nacional para as próximas gerações, tais como: Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Paulinho da Viola?...Quando nem eles nem nós estivermos mais por aqui, muitas canções deles vão permanecer na roda, com certeza, né?!...
 Mas quais canções dos compositores do nativismo gaúcho vão permanecer? Canto Alegretense, Sabe Moço, Veterano, Desgarrados, Esquilador, Gaudêncio Sete Luas, Não podemos se entregá pros home, Cordas de Espinho e...são algumas canções em que aposto e jogo as minhas fichas como sendo as que permanecerão no folclore para as futuras gerações “nesta ímpia e injusta guerra” do gauchismo com o restante do Brasil.

O ÚLTIMO DINOSSAURO DA MANUTENÇÃO

Éramos quatro na sala, os quatro dinossauros na jaula de extinção. Com a aposentadoria do Jalba, ficamos em três. Depois, com a minha saída para o mundo encantado dos “inativos”, restaram apenas dois na cela do Jurassic Park. Agora, com a saída da Engª Catarina, acreditem!, que entrou em Licença Aguardando Aposentadoria (LAA), restou apenas o Álvaro como o último Dinossauro da Manutenção do Dmae.
A Catarina e o Jalba  eram vinho de pipas de outras safras, mas o Álvaro e o Engº Souto (meu último Superindendente), mais o Engº Rogério de Menezes (meu último Diretor de Manuntenção) e eu, todos  entramos no Dmae no mesmo concurso público para o cargo de Escriturário em 1976. Por isso tínhamos matrículas quase sequenciais, tipo os os números dos irmãos Metralha. Com exceção do último Dinossauro, todos já estamos “extintos da ativa” e já percorremos os ritos dos aposentaNdos até o dia D.
 A última semana de “ativo” de um aposentaNdo é destinada literalmente ao bota-fora de pastas e da imensa quantidade de papéis recolhidos das nossas prateleiras e gavetas do  local de trabalho. É impressionante como se junta papeladas inúteis, coisas que se vai carregando na espera de surgir uma boa oportunidade de descarte, o que não chega nunca. Esta é a hora, às vésperas da aposentadoria, de se fazer o feng-shui final, de limparmos e desovarmos tanto os arquivos físicos quanto os virtuais.

            É tempo também de se dedicar a rastrear, pasta por pasta dos arquivos digitais no computador do DMAE, cautelosamente selecionando o que deve ser repassado para os colegas que vão dar continuidade nos serviços que competia ao aposentando. Nesse processo dos últimos dias, é claro, também se vai preparando o kit de viagem para a aposentadoria, empacotando os arquivos que interessam levar como “recuerdos”, especialmente o dossiê em mídias de fotos das caras dos colegas e dos locais do DMAE.  
Lembro que para a bagagem da minha viagem adquiri uma mala grande, ou seja, comprei um HD-Externo de 120GB para  acomodar meu breve histórico de registros digitais. Breve sim, por incrível que pareça, pois faz pouco mais de uma década que dispomos de computadores individualizados, embora pareça que esta tecnologia desde sempre existiu. Faz menos tempo ainda que dispomos de máquinas digitais de fotografias.
No último dia de trabalho, evita-se ao máximo ser emotivo. Lembro que no meu último dia, por desígnios dos astros, tive a oportunidade de participar de um ato público de protesto do Movimento dos Capacetes Brancos  dos Engenheiros, realizado na esquina do meu local de trabalho, onde pude despedir-me de vários colegas.
 A última hora do último dia, geralmente, o aposentaNdo dedica a percorrer os diversos recantos da Divisão de Manutenção, despedindo-se individualmente de cada colega. No final do expediente, tem a especial solenidade do último movimento desta formidável ópera de cumprimento ritual para se ganhar o direito a uma aposentadoria integral, qual  seja, o ato solene da última dedada no relógio ponto digital!

           Carrega-se consigo as tralhas que acumulamos durante todo esse longo tempo no nosso reduto onde passávamos 40 horas semanais; bem como carregamos as fortes influências de formação humanísticas das várias gerações de colegas com quem convivemos no Departamento. Então, partimos do convívio diário com os colegas, acreditando que há vida depois da aposentadoria, nesta transição do mundo dos ativos para o mundo dos inativos.
               O último dos Dinossauros, o Álvaro, é um benemérito polemista e grande frasista, adora jogar “cascas de bananas”  nas conversas, como costuma dizer o colega Tedesco, para provocar escorregadias discussões. Como jurássico é possuidor de um talento raro para a diplomacia, vai comendo o mingau pelas beiradas, vai cozinhando o galo com sua risadinha de hiena esperta e sua paciência de monge tibetano e, via de regra, de tanto “rodear o toco”, acaba costurando outras alternativas não pensadas anteriormente no debate, por mais acalorado ou sonolento que o assunto seja. Nunca ninguém viu alguém conseguir tirar o Álvaro do sério, do seu jeito bonachão de ser, com seu contagiante bom humor de dinossauro de desenho animado.
O evento do último dia de trabalho da Madrinha da “EME-DVM-GMAN”, no dia 11 de setembro, talvez não por acaso coincida com a data da queda das torres gêmeas, pois ela sempre foi o pilar técnico e afetivo que fundamentou estruturalmente a área de manutenção de equipamentos do Dmae. As profecias eram de que o local seria emparedado e deixaria de existir quando o último dos dinossauros  se aposentar, ao sair e apagar a luz...
Assim, cumprido o ritual do derradeiro dia útil de trabalho, rumamos para a liberdade incondicional da disponibilidade do tempo do resto das nossas vidas, sempre repetindo como um mantra íntimo de agradecimento:

 -Valeu pessoal, valeu DMAE!!!!!

O IMPERADOR, O HIPPIE E O MENDIGO

Semana da pátria, dia 7 de setembro com direito a parada militar e protestos dos jovens contra o militarismo, em homenagem à independência do Brasil proclamada contra o Império de Portugal. Dentro da Manutenção tem uma placa indicativa de nome de rua, fixada na esquina que as paredes dos pavilhões formam no pátio da Divisão. “ Rua D. Pedro I - Primeiro Imperador e Proclamador da Independência em 1822”, é o que está escrito na placa. Segundo relato do pessoal remanescentes da época do meu ingresso na Manutenção, a tal placa de rua está  ali desde quando eu entrei em 1978. Quantos de nós nunca perceberam a existência desta placa? E quantos de nós que notamos a placa, nunca nos perguntamos porque ela está ali?
Pois ocorreu de eu ter notado a placa e de ter me impressionado com o envelhecimento do mendigo Rodrigo, que vive pelas redondezas e que, por tão longa convivência com o corpo funcional da região da Princesa Isabel,  é praticamente um funcionário do DMAE.  Segundo a Engª Catarina, que tudo viu e tudo sabe, entre a Seção de Veículos e o Depósito, muito antigamente, tinha uma rua que unia a Rua Gastão Rhodes com a Rua São Francisco. As casas desta rua foram desapropriadas pelo DMAE, e a comunidade que constituía esta vila foi removida desta região. Com a demolição das casas, a placa do extinto logradouro público foi resgatada e preservada como parte da história da Divisão de Manutenção.
 O mendigo Rodrigo é, pois, como uma alma penada daquela comunidade da extinta rua D. Pedro I, alma que ficou perambulando com suas tralhas no entorno. O velho Rodrigo passou a vida inteira morando na rua, dormindo nas calçadas ao relento, delirando na sua demência geralmente amistosa, como que procurando sua possível família e casa  destruída. Rodrigo é louquinho, mas não rasga dinheiro: -Me dá cinco contos! – costumava me intimar sempre que me via. Mas o envelhecimento do Rodrigo reflete o nosso próprio envelhecer, ele em condições infinitamente mais hostis do que as nossas de estáveis funcionários públicos, vivendo das escassas esmolas que lhe jogamos. Ele é um heroico sobrevivente, como nenhum de nós se imaginaria conseguir viver no reino dos seres famintos como ele viveu.

           Assim, perambulando rotineiramente pela extinta rua, eu que entrei no Dmae com pinta de hippie e me tornei um barnabé, e o Rodrigo, um portador de deficiência mental tornado mendigo, envelhecemos como vidas paralelas no mesmo tempo e espaço, até que as paralelas se toquem no infinito de cada um, e todos voltem a se irmanar no pó de onde viemos, nos misturando inclusive com o primeiro imperador D. Pedro I do Brasil.